Ao menos uma vez a cada dois meses, o Palácio do Planalto abriga reuniões da Junta de Execução Orçamentária (JEO), criada para arbitrar as disputas por dinheiro público entre as diferentes áreas de governo. Seu objetivo é garantir o equilíbrio dos gastos, conter o endividamento público e reduzir incertezas na economia. A junta é comandada pelos ministros da Economia, Paulo Guedes, e da Casa Civil, general Walter Braga Netto. Neste mês, houve duas novidades na rotina de trabalho. A primeira foi a presença de um segundo general, Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Secretaria de Governo, como registra a agenda de Braga Netto, no dia 9. A reunião aconteceu no quarto andar do palácio, a um lance de escadas do gabinete do presidente Jair Bolsonaro. A segunda – e maior – novidade é que as decisões da JEO passaram a ser sigilosas.
A piauí pediu ao Ministério da Economia e à Casa Civil acesso às decisões da junta. Leu como resposta que as informações são classificadas como “reservadas”. Uma lei de 2011 permite que sejam consideradas assim e mantidas em sigilo por até cinco anos informações que ponham em risco a segurança do Estado e da sociedade. Uma suposta decisão da junta poderia esclarecer pelos menos em parte a história da compra de um satélite pelo Ministério da Defesa, ao custo de 145,4 milhões de reais, para monitorar a Amazônia. O sigilo tornou a história ainda mais mal contada.
O projeto do satélite de 145,4 milhões de reais veio ao mundo num discreto registro lançado em 30 de junho no Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi), do Tesouro Nacional. Sem nenhum detalhe, o Ministério da Defesa informava ali o compromisso de gastos (empenho) para a compra de um microssatélite com dinheiro recuperado pela Operação Lava Jato.
O Ministério da Defesa informou à piauí, porém, que a compra foi suspensa por imposição da junta orçamentária. A junta teria determinado um corte de 430 milhões de reais no orçamento dos militares, que reagiram em tom quase dramático: “o corte de orçamento gerará prejuízos nas ações das Forças Armadas, mas o Ministério da Defesa irá se esforçar para cumprir as determinações da JEO.” Na mesma ocasião, a Defesa revelou que a suspensão da compra seria apenas “momentânea”. A compra do satélite voltará a ser analisada no ano que vem, segundo o ministério, por se tratar de uma “importantíssima ferramenta tecnológica, permitindo significativa ampliação da capacidade de proteger a Amazônia além de contribuir diretamente para a soberania nacional”.
Do prédio vizinho na Esplanada em Brasília, o Ministério da Economia negou por escrito que tenha havido corte de verbas na Defesa. Como o país vive estado de calamidade pública até o último dia do ano, em decorrência da pandemia de Covid-19, está suspenso o cumprimento de metas fiscais e, por isso, “não há contingenciamento nas dotações de qualquer órgão integrante dos orçamentos fiscal e da seguridade social”. Então por que foi suspensa a compra do satélite?
A confusão em torno do satélite começou depois que o diretor do Grupo de Observação da Terra, Gilberto Câmara, batizou o equipamento de “cloroquina”. Por telefone de Genebra, na Suíça, onde comanda o GEO, Câmara disse que o satélite radar que a Defesa comprava não diferenciaria árvores em pé de árvores derrubadas e demoraria 65 dias para cobrir todo o território da Amazônia Legal. “Se comprarem, vai ser um desperdício”, insiste. “A compra do satélite é diversionismo no debate sobre o desmatamento da Amazônia.”
O site Defesanet, patrocinado pela indústria de defesa, em editorial, escorregou no francês e falou em “coup d’presse” para criticar a reação das ONGs à compra: “Aqui associados a interesses externos, o objetivo é de impedir que o governo tenha olhos na Amazônia.” O site divulgou na íntegra uma nota do Ministério da Defesa, datada de 24 de agosto. Nela, o ministério informa a existência de uma licitação internacional em andamento. O microssatélite poderia ser usado também no monitoramento da chamada Amazônia Azul, como é chamada toda a extensão marítima ao longo do litoral brasileiro, do Amapá ao Rio Grande do Sul.
A Defesa também alegava que o satélite integraria o Programa Estratégico de Sistemas Espaciais (PESE), criado em 2012, e que teve investimento bilionário defendido em 2019 pelo ministro Fernando Azevedo e Silva em resposta a um requerimento de informações do Congresso. O satélite inicialmente previsto no projeto Lessônia, um dos braços do PESE, tinha custo estimado em 2019 em 578 milhões de reais, quando a cotação do dólar era de 3,80 reais, bem abaixo dos 5,47 reais da cotação do dólar na data em que o compromisso de gasto foi registrado no Tesouro Nacional. O lançamento do satélite de sensoriamento remoto por radar era previsto para 2026. A diferença no custo e na data de entrada em funcionamento sugerem que o governo tenha optado por um satélite menor e menos potente, vendido por uma empresa finlandesa, chamado Iceye. Sobre eventuais mudanças no projeto original do Lessônia, a Defesa informou que o radar em diferentes bandas seria capaz de detectar perda de floresta e contribuir para a detecção do desmatamento.
O satélite seria comprado pelo Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam), subordinado ao Ministério da Defesa, e que funciona como centro de informações para o combate ao desmatamento na Amazônia, centralizado nas Forças Armadas. Documento assinado pelo vice-presidente Hamilton Mourão, que comanda o Conselho Nacional da Amazônia Legal, prevê para dezembro de 2021 a integração dos sistemas geoespaciais do governo sob controle militar. “O fato concreto é que até hoje o CENSIPAM não produziu um único relatório público que permita demonstrar sua alegada competência”, critica Gilberto Câmara. Os dados do Inpe, instituto que dirigiu entre 2005 e 2012, estão disponíveis na internet. Eles mostram que o primeiro ano do governo Bolsonaro teve a maior taxa de desmatamento da década. Neste ano, um novo recorde é esperado, com base nos alertas já divulgados pelo instituto.
O general Hamilton Mourão não esconde críticas ao Inpe. Em artigo publicado em sua conta no Twitter em setembro, sob o título Amazônia em chamas…?, Mourão volta a questionar dados do instituto e a defender uma releitura das informações sobre queimadas e desmatamento. “É importante que os dados sejam transparentes, contudo submetidos a uma análise qualitativa por meio de processo inteligente, levando a ajustes e correções, necessários para o combate às ilegalidades e para que a informação produzida seja a expressão da verdade.” O controle das informações na área militar faz parte dos planos do Conselho da Amazônia.
Quatro dias antes do artigo de Mourão, o Ministério da Defesa anulava o compromisso de gasto de 145,4 milhões com o microssatélite. O documento da Defesa, de 15 de setembro, menciona uma determinação interna do ministério. A análise dos registros no Tesouro Nacional mostra, porém, que foi mantida intacta a dotação de 408,7 milhões de reais da ação intitulada Proteção, fiscalização e combate a ilícitos na Amazônia Legal, até ali financiada integralmente com recursos recuperados pela Operação Lava Jato. Não houve corte.
Seguindo o caminho do dinheiro no orçamento do Ministério da Defesa, vê-se que parte do dinheiro da Lava Jato que compraria o satélite foi transferido para a Operação Verde Brasil 2, de combate ao desmatamento, numa simples troca de fontes de recursos. Na sequência, o dinheiro da Lava Jato começou a ser gasto na compra de peças e na manutenção de aeronaves pelo Exército e pela Aeronáutica. Em duas ações voltadas à Amazônia, o Ministério da Defesa foi autorizado a gastar em 2020 827,3 milhões de reais, o equivalente a 257 vezes o orçamento do Inpe neste ano para o monitoramento por satélites dentro e fora da Amazônia.
Jair Bolsonaro tem dado apoio ao avanço do controle militar da Amazônia e ao aparelhamento das Forças Armadas. Em junho, o presidente participou da inauguração do Centro de Operações Espaciais (Cope), em Brasília, peça da Estratégia Nacional de Defesa na Área Espacial. O projeto de lei orçamentária para 2021 prevê para a continuidade da implantação e a manutenção do Programa Estratégico de Sistemas Espaciais mais de 12 milhões de reais, quatro vezes o que o mesmo projeto reserva ao monitoramento por satélites do Inpe.
Enquanto isso, segue o imbróglio do microssatélite, acompanhado agora por ataques à transparência nos gastos públicos. O regimento interno da Junta de Execução Orçamentária, estabelecido por resolução assinada em maio deste ano pelos ministros Paulo Guedes e Braga Netto, diz que as reuniões são reservadas, mas não as suas decisões. Tudo deve ser relatado em atas. Ao torná-las confidenciais, o governo aposta na opacidade.
MARTA SALOMON
Jornalista especializada em políticas públicas e doutora em Desenvolvimento Sustentável (UnB), trabalhou na Folha de S. Paulo e no Estado de S. Paulo.
Fonte: piaui.folha.uol.com.br