Huuummm… Não sei, não… O presidente que 56% dos brasileiros gostariam de ver pelas costas por meio de um processo de impeachment; no qual 59% não votariam de jeito nenhum; em cuja palavra 57% nunca confiam; que fez e faz uma gestão péssima ou ruim da pandemia para 54%, bem, esse presidente discursa nesta terça na abertura da Assembleia Geral da ONU. Se Jair Bolsonaro cumprir a palavra dada na live-horror de quinta, o Brasil estará exposto mais uma vez ao vexame aos olhos do mundo.
O vexame, aliás, já começou. Neste domingo, fotos de Bolsonaro e comitiva foram postadas nos perfis de Gilson Machado, o mau sanfoneiro do Turismo, e do general Luiz Eduardo Ramos, o falastrão da Secretaria-Geral da Presidência. O presidente e sua comitiva aparecem comendo pizza na rua.
Davam também seu testemunho de humildade e desprendimento Pedro Guimarães, o onipresente e politiqueiro presidente da Caixa; Ramos e Machado; Marcelo Queiroga, ministro da Saúde; almirante Flávio Rocha, da Secretaria de Assuntos Especiais, e Anderson Torres, ministro da Justiça. Bolsonaro gosta de simular simplicidade e modéstia em momentos assim, como a evidenciar que despreza a pompa do cargo. No Twitter, Ramos resolveu apelar à demagogia, o que não é raro em sua atuação. Postou a foto dos comensais da calçada com o texto: “Jantar de luxo em NYC”, como a dizer: “Eis aqui um governo de gente modesta, que economiza dinheiro público e não se entrega facilmente aos deslumbramentos do poder.
É duvidoso que Bolsonaro tenha aprendido, ao longo da vida, a comer direito — e gosto e repertório, nessas coisas, pesam mais do que dinheiro. Mas nem se cuida disso agora. Não se trata de gosto ou de escolha, mas de uma imposição da lei vigente em Nova York. O presidente do Brasil está proibido de frequentar restaurantes na cidade americana porque é preciso apresentar o atestado de vacina. E o líder em rejeição faz questão de deixar claro que não foi imunizado. Nem mesmo é possível saber se isso é verdade porque, pasmem!, a situação vacinal do presidente foi posta sob sigilo máximo: 100 anos!
Presidente modesto? A motociata de junho custou, atenção!, ao governo paulista R$ 1,2 milhão só na mobilização de policiais. Não se sabe, até agora, quanto o governo federal gasta com essas pantomimas eleitoreiras, sempre acompanhadas por um formidável esquema de segurança. O mandatário faz campanha com a grana do distinto público e depois aparece comendo pizza na calçada para simular a simplicidade do homem do povo. A imagem já é parte da campanha eleitoral.
PRENÚNCIO RUIM
Se o presidente realmente fizer o que anunciou na live, levará para o discurso da ONU a questão do marco temporal para a demarcação das terras indígenas, que está em julgamento no Supremo. O relator, Edson Fachin, considerou inconstitucional a fixação da promulgação da Constituição de 1988 como a data de referência para evidenciar a presença ou não de indígenas em áreas passíveis de demarcação. Nunes Marques abriu divergência e aceitou a premissa. Terceiro a votar, Alexandre de Moraes pediu vista.
Na live de quinta, Disse Bolsonaro: “O que eu devo falar lá [na ONU]? Algo nessa linha: se o marco temporal for derrubado [pelo STF]; se tivermos que demarcar novas terras indígenas — hoje em dia, temos aproximadamente 13% do território nacional demarcado como terra indígena já consolidada –, caso tenha-se que levar em conta um novo marco temporal, essa área vai dobrar”.
E acrescentou: “A gente espera que o STF mantenha esse marco temporal lá de trás, de 1988. Para o bem do Brasil e para o bem do mundo também. Tem gente lá fora pressionando por um novo marco temporal, para demarcar mais uma área equivalente à de Alemanha e Espanha. Vai ter reflexo lá fora também.”
Não custa lembrar o tema da Assembleia Geral deste ano: “Construindo resiliência por meio da esperança – para se recuperar de Covid-19, reconstruir a sustentabilidade, responder às necessidades do planeta, respeitar os direitos das pessoas e revitalizar as Nações Unidas”.
É evidente que é um despropósito o presidente levar às Nações Unidas uma tese que está, no Brasil, sob o escrutínio do STF, usando o discurso como um palanque. Aliás, na live, ele recorreu a essa palavra. Disse: “Vou fazer o discurso de abertura. Um discurso tranquilo, bastante objetivo, focando os pontos que interessam para nós. É um palanque muito bom para isso também, serve como palanque, aquilo lá. Vamos mostrar objetivamente o que é o Brasil, o que estamos fazendo na questão da pandemia — coisa que somos atacados o tempo todo não é? — bem como o agronegócio, a energia no Brasil”.
Para registro: as contas que Bolsonaro faz sobre as terras que seriam transformadas em reservas indígenas é uma fantasia. A própria Procuradoria Geral da República, que não pode ser acusada de militância antibolsonarista, escreveu o óbvio em sua manifestação ao Supremo: não faz sentido estabelecer a data de 1988 como marco. É preciso que se analise cada caso. Quem disse que toda reivindicação é procedente?
Se Bolsonaro fizer mesmo o que promete, vai reforçar a sombra de suspeição sobre a produção brasileira e passar ao mundo a imagem de que o país não respeita os direitos de povos tradicionais e pretende usar terras indígenas para a produção agropecuária, o que é muito pouco inteligente. Mas, diz o presidente, ele está em busca de um palanque. Para quem? Para os seus radicais em solo pátrio.
COVID-19
Da turma comendo pizza na calçada, aquele que parece mais abobalhado é Marcelo Queiroga. Não dá dúvida de que Bolsonaro vai exaltar o suposto sucesso do seu governo no combate à Covid-19 — vamos ver se caberá ao menos um lamento pelos quase 600 mil mortos. Acompanhado de seu ministro da Saúde, o presidente discursará na ONU seis dias depois de o governo ter recomendado a suspensão da vacinação em adolescentes, embora os motivos não estejam claros.
Bolsonaro não escondeu que a orientação era sua, a partir, afirmou, de “informações” que chegavam a ele, sem deixar claro a origem das ditas-cujas. Ao justificar a decisão destrambelhada, o presidente mentiu: afirmou que a OMS é contra a vacinação de adolescentes.
CONCLUO
Torço para estar enganado porque, se não estiver, é a reputação do país que se degrada um tanto mais. Os indícios não são bons. O “Crocodile Dundee” de Banânia — que come pizza na calçada para evidenciar a sua resistência ao globalismo — tudo indica, quer usar o discurso da ONU como um palanque para falar às suas milícias digitais e ao “agrorreacionarismo” no país e para se estabelecer como um dos líderes mundiais do conservadorismo. Seus lunáticos não apostam nunca no diálogo. Buscam o confronto. Vamos ver se o que resta de profissionalismo no Itamaraty consegue conter a sandice.
Fonte: noticias.uol.com.br