Ao longo de 2020, a palavra “vacina”, em todas as suas variações, foi citada 25,8 milhões de vezes nas redes sociais no Brasil – uma média de 70 mil menções por dia. Em dezembro, com o início da imunização mundo afora, a palavra disparou nas redes e não saiu mais do centro das atenções: só nos primeiros vinte dias de 2021, já houve aproximadamente 9,9 milhões de citações à vacina, numa média impressionante de quase 500 mil publicações por dia.
Os grandes personagens desse enredo, como tudo o que acontece na política brasileira desde 2018, foram Jair Bolsonaro e sua trupe. Ora com esperanças de desenvolver um imunizante próprio – como no início da pandemia –, ora comentando sobre o suposto perigo da “vacina chinesa”, o presidente dominou o debate digital. Do outro lado da trincheira esteve João Doria, governador de São Paulo, que nos últimos meses se esforçou para capitalizar politicamente em cima da CoronaVac, vacina produzida pelo Instituto Butantan em parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac.
No ano passado, o dia com maior número de citações à vacina foi 21 de outubro. Ao todo, 655 mil postagens trataram do assunto. Naquela data, Bolsonaro foi às redes sociais e ao cercadinho do Palácio do Alvorada desautorizar seu ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que na véspera havia anunciado um protocolo de intenções para a compra da CoronaVac – no vocabulário de Bolsonaro, a “vachina”. “O povo brasileiro não será cobaia”, bradou o mandatário.
Além disso, fora anunciada, naquele mesmo dia, a morte de um brasileiro que participou da terceira fase de testes da vacina de Oxford, no Rio de Janeiro. Especulava-se que ele teria morrido por causa de uma reação adversa à vacina, o que engrossou o caldo das teorias conspiratórias bolsonaristas. Depois soube-se que o voluntário havia tomado placebo. Seguiram-se os testes.
Passadas duas semanas, outro voluntário morreu, dessa vez durante os testes de fase 3 da vacina Coronovac. No dia 10 de novembro, um Bolsonaro eufórico comemorou em sua página de Facebook: “Mais uma que Jair Bolsonaro ganha.” O derrotado, em sua visão, era Doria. Mais tarde, descobriu-se que o voluntário na verdade havia se suicidado. Rumores sobre o aparelhamento da Anvisa – a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que naquele momento suspendeu os testes da vacina – pipocaram nas redes.
Antes de saber que se tratava de um suicídio, sites bolsonaristas – como o Jornal da Cidade Online – e deputados bolsonaristas – como Bia Kicis (PSL-DF) e Carlos Jordy (PSL-RJ) – também celebraram a notícia. Jordy escreveu que os defensores da China deveriam estar “se rasgando”. O tom belicoso contra os chineses era uma tônica do agrupamento de apoiadores de Bolsonaro.
Ao final do ano, após mais de seis meses de pandemia e de conflitos com Doria, o presidente e seus asseclas nas redes já haviam se tornado inimigos declarados da vacina chinesa – e de outras também. Bolsonaro tinha como mantra declarar que as vacinas não haviam sido testadas a contento e que por isso as fabricantes não iriam se responsabilizar por eventuais efeitos colaterais. Ao criticar a vacina da farmacêutica americana Pfizer, Bolsonaro chegou a dizer que o imunizante poderia fazer uma pessoa “virar Super-Homem”, assim como “nascer barba em alguma mulher aí, ou algum homem começar a falar fino”. Ele aventou, inclusive, a possibilidade de os vacinados virarem jacarés. A declaração imediatamente viralizou.
Mas Bolsonaro nem sempre se opôs às vacinas. Ao longo do ano passado, ele fez 29 publicações sobre o assunto em sua conta no Twitter. Seu primeiro post sobre os imunizantes foi publicado no dia 18 de março de 2020, contendo um vídeo em que o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta anunciava que os Estados Unidos já haviam testado uma vacina em humanos. Nos comentários do post, apoiadores comemoravam a notícia, auspiciosos com uma possível vacina. Mandetta, no vídeo, disse que “nós só teremos paz com relação a esse vírus quando tivermos uma vacina”.
Os dias seguintes a essa postagem foram turbulentos. Bolsonaro fez um pronunciamento em rede nacional chamando a Covid de “gripezinha”, Mandetta foi demitido após semanas de crise e Sergio Moro largou o governo. Ainda não havia auxílio emergencial. Enquanto sua popularidade despencava aos patamares mais baixos da série histórica nas pesquisas de opinião, dia após dia o Brasil batia recordes de mortes pela Covid. O governo, nesse meio tempo, fomentava o negacionismo e bradava contra o isolamento social.
Bolsonaro só voltou a falar em vacinas no dia 8 de maio, quando Nelson Teich já havia se tornado o novo ministro da Saúde. Em uma publicação nas redes, o presidente afirmou que Teich vinha negociando com laboratórios para que o Brasil tivesse “PRIORIDADE” (em caixa alta) na compra de imunizantes. Poucos dias depois, em 15 de maio, o ministro pediu demissão, dando lugar a Eduardo Pazuello, general da ativa do Exército que estava cedido ao Ministério da Saúde como Secretário Executivo de Teich. Ainda interino, Pazuello tomou sua primeira decisão de impacto no dia 20: facilitou a prescrição da hidroxicloroquina para doentes de Covid, medida que seu antecessor havia se recusado a tomar.
O presidente ainda celebrou, no começo de junho, a participação do Brasil no “Acelerador de Vacinas”, uma iniciativa envolvendo 44 países para o desenvolvimento de vacinas, testes e tratamentos para a Covid. Apoiadores do governo comemoraram a notícia.
Dois dias depois, em 6 de junho, Bolsonaro divulgou a autorização da Anvisa para testes da vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford. Com isso, reorientou sua militância, que até então se opunha ao imunizante pelo fato de a pesquisa ser apoiada pela Fundação Lemann – instituição que, na visão de mundo bolsonarista, reza pela cartilha do comunismo e do “globalismo”.
No fim do mês de julho, bolsonaristas como a deputada Carla Zambelli (PSL-SP) comemoraram mais uma etapa do desenvolvimento da vacina de Oxford. Resultados preliminares divulgados na revista científica The Lancet mostravam que a pesquisa ia de vento em popa. A publicação afirmava que o imunizante era “seguro e eficaz” contra o novo coronavírus.
Desde o final de julho, no entanto, algo mudou. Deputados bolsonaristas, que até então comemoravam o passo a passo das vacinas, passaram a se mostrar reticentes. Coincidência ou não, a mudança de atitude pôde ser notada logo após o anúncio, feito pelo governador João Doria, de que o Instituto Butantan estava pronto para iniciar a fase 3 dos testes da CoronaVac. Dali em diante, a relação do bolsonarismo com as vacinas nunca mais foi a mesma.
Em 26 de julho – apenas cinco dias após o anúncio de Doria – o deputado federal e filho do presidente, Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), fez uma postagem ambígua em suas redes, dizendo ter boas e más notícias sobre a vacina. A boa notícia era o progresso nas pesquisas; a má notícia, uma suposta “politização” da vacina. O post reproduzia um vídeo do influenciador de direita Fernando Conrado.
Esse discurso se repetiu dias depois, em uma nova postagem do filho 03 de Bolsonaro. Dessa vez, o deputado comemorava a notícia de que o Brasil receberia 15 milhões de doses da vacina de Oxford em dezembro de 2020. Ao mesmo tempo, voltou a alertar para os riscos de se politizar ou polemizar o imunizante.
Embora Eduardo Bolsonaro emitisse sinais do que estava por vir, o governo, àquela altura, ainda acolhia a pauta da vacina. As notícias, entre julho e agosto, eram animadoras. Jornais brasileiros destacavam que, munido com a CoronaVac e a vacina de Oxford, o Brasil seria um dos países do mundo com maior estoque de doses reservadas: ao todo, o país poderia contar com 220 milhões delas.
Foi com esse horizonte que um Bolsonaro ainda contente – ao lado do Ministro Pazuello, igualmente simpático – anunciou, na primeira semana de agosto, a criação de um crédito extraordinário de 1,9 bilhão de reais para financiar a pesquisa, a produção e aquisição da vacina de Oxford. Com isso, o país garantiria 100 milhões de doses do imunizante a partir de janeiro de 2021.
Mas o comportamento de Bolsonaro mudou radicalmente em 31 de agosto. No “cercadinho” em frente ao Palácio do Alvorada, ao ser interpelado por uma apoiadora, o presidente declarou de forma peremptória que “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”. Bolsonaro havia virado a chave. Sem explicar o motivo dessa declaração, ele, dali em diante, passaria a se pronunciar dia e noite contra a vacinação. Nessa nova cruzada, arrastou consigo seus fiéis apoiadores, que passaram a replicar teorias sem pé nem cabeça, como aquela que diz que as vacinas seriam capazes de alterar o DNA de quem as tomasse.
A base de apoiadores do presidente dominou o debate público sobre a vacina nos meses que se seguiram. Pelas redes sociais, levantaram dúvidas a respeito da segurança dos imunizantes e da qualidade dos estudos. Atacaram adversários que se colocavam em defesa da vacinação. No seio desse novo movimento antivacina estão, desde o início, os seguidores de Olavo de Carvalho, que há tempos já se posicionava contra a vacinação infantil. Há uma sinergia evidente entre grupos antivacina e grupos de extrema direita. Bolsonaro estaria acenando a seus apoiadores de primeira hora?
A última reviravolta aconteceu no final de dezembro. O começo da vacinação em uma dezena de países ao redor mundo, somado aos estragos da segunda onda da pandemia no Brasil, acarretou uma virada de mesa nas redes sociais. Os bolsonaristas, que antes dominavam o assunto de maneira soberana, foram perdendo espaço até serem atropelados pelo movimento “pró-vacina”, que explodiu nas primeiras semanas de 2021.
O dia 17 de janeiro, domingo, registrou um recorde absoluto de menções à vacina. Foram 2 milhões de publicações a respeito do assunto, uma marca sem precedentes. Havia motivos de sobra para isso: foi nesse dia que, após uma reunião de cinco horas transmitida ao vivo em rede nacional, a Anvisa liberou o uso emergencial das vacinas disponíveis no Brasil. Em seguida, Doria vacinou a primeira pessoa no país, em uma cerimônia no Hospital das Clínicas, em São Paulo. O governador foi a estrela do dia, sendo citado em aproximadamente 400 mil publicações, um recorde.
A aposta de Bolsonaro fracassou, ao menos no que diz respeito à discussão nas redes. Sua agenda antivacina não mobilizou o debate e, com isso o seu cluster, que outrora dominou a pauta, agora se vê reduzido a pouco mais de 10% das menções ao tema da imunização. No grafo abaixo, que trata das citações à vacina no último dia 20, a bolha bolsonarista, isolada, é representada pela cor azul. A imagem retrata um universo de 548 mil menções nas redes.
Diante dos dados, fica claro que o governo tem um grande problema a ser resolvido no mundo real – o mundo offline. A imagem de Pazuello, ministro da Saúde “especialista em logística”, está reduzida a pó nas redes sociais. Mesmo grupos bolsonaristas chegaram a zombar do general, que na última semana foi alvo de piadas em correntes de WhatsApp. Por tabela, a imagem das Forças Armadas também sofreu um desgaste significativo.
Em outra frente, a guerra antivacina corrói ainda a imagem do chanceler Ernesto Araújo. Sem o respaldo de Donald Trump no cenário internacional, o ministro parece desorientado. A China, agora, cobra a fatura dos inúmeros ataques que sofreu do bolsonarismo. E Bolsonaro, além de ter que aguentar seu arqui-inimigo passeando com a CoronaVac a tiracolo pelo país, agora vê a Argentina assumindo a liderança do processo de distribuição de vacinas na América Latina. Os presidentes Alberto Fernandez (Argentina) e Lopez Obrador (México), que na bússola bolsonarista se encontram à extrema esquerda, vão bem na produção dos imunizantes.
As trapalhadas do governo dificultam a defesa de Bolsonaro nas redes. Em editorial publicado nesta quinta-feira (21), o Estadão, que até pouco tempo pisava em ovos para criticar o governo, referiu-se a Bolsonaro como o “presidente mais inepto da história”. Passados dois anos de seu mandato, e tendo mais dois pela frente, muitos estão repensando suas posições na arena política.
PEDRO BRUZZI
Sócio da Arquimedes, consultoria de análise de mídias sociais.
É mestre e graduado em administração pela Fundação Getulio Vargas.
Fonte: piaui.folha.uol.com.br