O presidente Jair Bolsonaro sofreu uma dupla derrota nesta terça-feira. Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado e do Congresso, fez a coisa certa e, em evento raro na história — é a quinta vez que acontece — devolveu ao Palácio do Planalto a MP 1.068, a tal, coalhada de inconstitucionalidades, que criava empecilhos para que as redes retirassem “fake news” do ar. Sob o pretexto de criar um elenco de justas causas para a exclusão de um material ou de um perfil, instituía-se, na prática, o vale-tudo. Já expliquei as várias impropriedades contidas no texto. Pacheco, em suma, não aderiu ao discurso arruaceiro que havia ouvido pouco antes, saído da boca do próprio Bolsonaro, no Palácio do Planalto.
O presidente do Senado e do Congresso anunciou a devolução, apontando “alterações inopinadas ao Marco Civil da Internet”, além de “considerável insegurança jurídica”. Ademais, tramita no Congresso o PL 2630/2020, que busca instituir a Lei Brasileira de Liberdade e Transparência na Internet. O texto já foi aprovado no Senado, em junho do ano passado e está em análise na Câmara.
O senador falou com clareza:
“O conteúdo normativo veiculado na medida provisória nº 1.068, de 2021, disciplina, com detalhes, questões relativas ao exercício de direitos políticos, à liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, matérias absolutamente vedadas de regramento por meio do instrumento da Medida Provisória”.
Pacheco lembrou ainda que o próprio procurador-geral da República, Augusto Aras, havia recomendado a suspensão liminar dos efeitos da Medida Provisória enquanto não houvesse o julgamento do pleno — julgamento que, agora, não haverá. A MP foi arquivada no lixo.
ROSA WEBER
Também no começo da noite, a ministra Rosa Weber, relatora de seis Ações Diretas de Inconstitucionalidade contra a MP, concedeu uma liminar suspendendo os efeitos da MP até julgamento do pleno. Foi também, reitere-se, o que pediu Aras.
Uma liminar só pode suspender os efeitos de um ato legal existente. Bem, esse não existe mais, e não há, portanto, matéria a ser deliberada pelo pleno do Supremo.
Pacheco honra, assim, a independência da Casa e o estado de direito. Poderia, se quisesse, acomodar e largar a questão para a deliberação do Supremo, uma vez que a votação haveria de ser rápida, já que liminar suspensiva em caso de ADI tem prioridade na pauta da Corte.
O senador foi ao ponto:
“Há situações excepcionais em que a mera edição de medida provisória, acompanhada da eficácia imediata de suas disposições, do rito abreviado de sua apreciação, do trancamento de pauta por ela suscitado e do seu prazo de caducidade, é suficiente para atingir, de modo intolerável, a higidez e a funcionalidade da atividade legiferante do Congresso Nacional e o ordenamento jurídico brasileiro”.
Confesso: há uma certa sensação de prazer cívico em ouvir uma autoridade da República, nos dias de hoje, a falar a língua da institucionalidade. É preciso pôr fim à rotina de truculência, de estupidez e de burrice que tomou conta da República. E isso tudo se mostrou de novo nesta terça, antes de Pacheco e Rosa tomarem suas respectivas decisões.
O ARRUACEIRO DA 5ª SÉRIE
Sei que parece incrível, mas aconteceu assim. Diante das mais altas autoridades da República, Bolsonaro teve a audácia de defender as “fake news” como… “parte da vida”!!! Várias autoridades recebiam no Palácio do Planalto o troféu Marechal Rondon das Comunicações, entregue pelo ministro Fábio Faria e pela primeira-dama, Michelle Bolsonaro.
E o presidente, claro!, discursou, com a habilidade conhecida para o improviso e para a reflexão instantânea. Afirmou esta maravilha:
“Como disse o Chacrinha, quem não se comunica se estrumbica (sic). Mas tem que se comunicar bem. A ‘fake news’ faz parte de nossa vida. Quem nunca contou uma mentirinha para a namorada? E nunca mentiria pra dona Michelle. Se não contasse, a noite não acaba bem.”.
Notem: a “noite acabar bem”, para Bolsonaro, corresponde ao rapaz contar alguma mentira à namorada, que, supõe-se então, devidamente enganada, permite que o gajo realize os seus intentos, sejam quais forem. Seria preciso indagar ao orador o que exatamente tinha em mente. O seu histórico ao tratar das mulheres como donas da própria vontade não é bom.
Não parou por aí, não! Fez-se de vítima:
“Se for levar em conta o que se fala do presidente nas redes sociais, eu duvido quem apanha mais do que eu. Mas em nenhum momento recorri ao Judiciário pra tentar reparar isso porque eu entendo também que o (sic) fake news é quase como um apelido. Se botar um apelido agora no Queiroga, e ele ficar chateado, vai pegar o apelido. Cai por si só, Não precisamos de regular isso aí. Deixemos o povo à vontade. Obviamente, quando se vai para pedofilia e outras coisas, não tem cabimento. Isso não é fake news, é crime”.
Finge não entender que a “fake news” é a notícia falsa que pode implicar uma gama variada de crimes, puníveis pelo Código Penal e pela legislação eleitoral.
Mais: André Mendonça, quando no Ministério da Justiça, acionou mais de uma vez a Polícia Federal para investigar críticos do presidente com base na extinta Lei de Segurança Nacional.
Ouviram essas sábias palavras o próprio Pacheco, um dos agraciados, e Dias Toffoli, ministro do Supremo que abriu de ofício, no dia 14 de março de 2019, o Inquérito 4.781. E o fez, justamente, para investigar a indústria criminosa de “fake news” contra o Supremo.
Defender tal prática como simples molecagem, coisa de arruaceiro de quinta-série, só nos informa a importância que o esquema criminoso de mensagens falsas exerce nas redes bolsonaristas. O presidente sabe o peso que a instrumentalização da mentira teve na sua eleição.
TCHUTCHUCA DA DEMOCRACIA
Na sua fase “tchutchuca da democracia”, Bolsonaro ensaiou o discurso de estadista — e também se trumbicou nisso –, ao mesmo tempo em que defendia as “fake news” como coisinha sem importância:
“Nosso governo conversa com todo mundo. Esse prêmio, esse simples troféu, é um reconhecimento a todos vocês pela colaboração com o governo e com o Brasil. O que seria do Executivo sem o Senado, sem a Câmara, e também, por que não dizer?, em muitos momentos, sem o STF? Nós somos um só corpo. O nosso bom entendimento, [é a] alegria do nosso povo”.
O regime em que os Três Poderes são um só corpo não é o democrático; é o fascista. Na democracia, os Poderes são independentes e devem ser harmônicos, regulados pela Constituição.
Bem, Pacheco não caiu na conversa da “tchutchuca da democracia” e devolveu a MP do vale-tudo. Afinal, Bolsonaro estava querendo ser o namorado pilantra, imaginando que o resto do país era a mocinha bobinha que está em sua imaginação.
Dá para entender por que a rejeição das mulheres a este senhor é ainda maior do que a dos homens.
Fonte: noticias.uol.com.br