Em um mundo no qual há listas de “maiores”, “melhores” e “top” para quase tudo, ainda não adquirimos o hábito de eleger as “top leis” de uma década, de um governo ou de uma legislatura. Se um certame assim existisse, a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), que completará dez anos de promulgação no próximo dia 18, seria forte candidata a estar entre as finalistas de nossa época.
Este conteúdo é parte da série “Aqui mando eu: democracias frágeis, políticas autoritárias”, projeto jornalístico dedicado a investigar expressões contemporâneas do autoritarismo na América Latina. O projeto é coordenado pela produtora mexicana Dromómanos, em parceria com o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT) e os seguintes veículos: El Universal (México), El Faro (El Salvador), Divergentes (Nicarágua), Cerosetenta (Colômbia), Efecto Cocuyo (Venezuela), revista piauí (Brasil) y La Pública (Chile). Os demais conteúdos podem ser acessados em aquimandoyo.dromomania.com.
Em um mundo no qual há listas de “maiores”, “melhores” e “top” para quase tudo, ainda não adquirimos o hábito de eleger as “top leis” de uma década, de um governo ou de uma legislatura. Se um certame assim existisse, a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), que completará dez anos de promulgação no próximo dia 18, seria forte candidata a estar entre as finalistas de nossa época.
Não é exagero dizer que a LAI redefiniu não apenas o acesso à informação, mas a atuação de diversos profissionais e organizações que dependem da obtenção facilitada a dados públicos, como jornalistas, acadêmicos e gestores públicos, além de organizações do terceiro setor. Mais do que consumidores profissionais de informação, a lei aproveita diretamente ao cidadão: permite acesso rápido e gratuito a informações de todo tipo, entregues em formato simples e acessível a quem as pedir. Nenhuma outra lei foi tão bem-sucedida em concretizar o direito de acesso à informação e o dever de transparência da administração pública.
Até o governo de Jair Bolsonaro.
Desde sua posse, Bolsonaro inundou a administração pública federal com os tipos de agente público mais atavicamente propensos a trabalhar contra a transparência de informações em um Estado: os militares. A opacidade fardada casou-se com a paranoia pessoal de Bolsonaro, o passado cheio de episódios suspeitos de sua família e de seus amigos e seu indisfarçável desprezo ao trabalho de jornalistas, pesquisadores e ONGs. Com o enfraquecimento político do presidente e a captura do governo pelo Centrão, essa aliança ecumênica ganhou o apoio de políticos que prosperam nos breus da máquina pública, onde tudo deve ser secreto – das conversas com atravessadores de vacinas à distribuição de gordos nacos do orçamento público via emendas acertadas por WhatsApp.
Como é possível que a opacidade avance em um Estado cuja Constituição consagra, como faz a nossa, o acesso à informação como direito fundamental? Que ordena que a administração pública opere sob a máxima de publicidade de seus atos, e cujos órgãos já haviam internalizado a tarefa de oferecer dados de qualidade a suas rotinas burocráticas nesta década de vigência da LAI? Entender o retrocesso recente no acesso à informação no Brasil passa por alguns caminhos diferentes.
Uma primeira chave para esse enigma está numa interpretação alargada do artigo 31 da LAI. O dispositivo estabelece que as “informações pessoais” – intimidade, vida privada, honra e imagem de pessoas – são de acesso restrito pelo prazo de até cem anos, em princípio. A cruzada contra a LAI vem sendo feita, em um estágio inicial, pelo alargamento impróprio desse conceito de “informações pessoais”.
Essa não é uma disputa nova. Desde que começaram a ser publicadas informações sobre vencimentos de funcionários públicos, bem antes do governo Bolsonaro, o artigo 31 passou a ser invocado como anteparo legal para dificultar o acesso a dados sobre salários. Contra essa interpretação, consolidou-se o entendimento de que os ganhos de agentes públicos não poderiam ser mantidos em segredo, ainda que isso implique alguma limitação à privacidade dessas pessoas. Essa leitura afastou a ideia de que a invocação à privacidade pode servir como uma carta de supertrunfo capaz de barrar o conhecimento de informações de interesse público apenas porque elas de alguma forma dizem respeito à vida privada de seus titulares. O recado dado é simples: na administração pública, a publicidade é a regra, ainda que isso implique restrições ao âmbito da proteção da privacidade de seus agentes.
Nas interpretações do governo Bolsonaro à LAI, contudo, o que deveria ser exceção vem se tornando regra. Casos exemplares nesse sentido dizem respeito à restrição das informações sobre visitantes ao Palácio da Alvorada, reivindicadas desde 2019. Com base em uma suposta proteção da segurança do presidente da República, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) se recusou ao menos 34 vezes a fornecer os dados das visitas, mesmo com decisão expressa da Controladoria-Geral da União (CGU) em sentido contrário. De modo semelhante, a Secretaria-Geral da Presidência determinou sigilo de cem anos sobre acesso dos filhos do presidente ao Planalto. A malandragem da interpretação está em intencionalmente ignorar que, além de membros da mesma família, os membros do clã Bolsonaro são agentes políticos que podem e devem ser questionados quanto a seu itinerário e suas relações com outros agentes políticos, ainda que de mesmo sobrenome. Saber quem está na agenda presidencial e quem frequenta espaços institucionais controlados pelo presidente é obviamente informação pública.
Outro modo de diminuir a eficácia da LAI está em ignorar o dispositivo da lei que diz que restrições de acesso à informação em favor da privacidade não são invocáveis para “prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido”. Esse dispositivo, porque milita em favor da regra geral da publicidade, deve ser entendido em sentido amplo, abrangendo inclusive apurações comandadas por organizações da sociedade civil e, principalmente, pela imprensa. Excessos na divulgação de informações privadas, se houver, podem ser punidos em caráter posterior, mas as informações não podem ser omitidas: a Constituição repele textualmente a censura prévia, e a LAI obviamente não pode ser interpretada de modo a viabilizá-la.
A mais flagrante violação a essa norma em nossa época foi a restrição de acesso ao processo disciplinar de Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, por ter participado de evento político junto a Bolsonaro em maio deste ano, quando ainda era militar da ativa – o que é expressamente vedado pelo Regulamento Disciplinar do Exército. No mês seguinte, o Exército colocou o artigo 31 da LAI para trabalhar em favor do obscurantismo e da impunidade: Pazuello foi agraciado pela extensão imprópria do dispositivo, e o processo que inexplicavelmente o absolveu de uma transgressão disciplinar em praça pública foi submetido a cem anos de solidão em arquivos militares impenetráveis.
Questionado no STF a esse respeito, o Comando do Exército alegou a falta de “interesse público patente” e a existência de uma “relação personalíssima entre um militar e seu comandante”. A justificativa, como se vê, não guarda qualquer relação com segredos de defesa ou militares, que tipicamente justificam o regime de sigilo.
A relatora da ação que objetiva acesso aos dados, ministra Cármen Lúcia, seguramente saberá enxergar a ausência de motivação própria, inclusive porque Pazuello militou o quanto pôde em prejuízo da transparência: atrapalhou a divulgação de dados epidemiológicos na pandemia, obrigando veículos de imprensa a constituírem um consórcio para buscar dados diretamente junto aos estados, e fez servidores do Ministério da Saúde assinarem termo de confidencialidade sobre informações de seu gabinete, ameaçando-os com a Lei de Segurança Nacional (LSN).
O diagnóstico da falta de transparência na Saúde, na verdade, serve como metonímia para toda a administração pública federal. Reduções globais de atendimento a pedidos já foram reportadas tanto em 2020 quanto em 2021. Ao mesmo tempo, decretos do governo federal ampliaram o rol de pessoas autorizadas a impor sigilo a documentos. Logo na primeira semana das restrições impostas pela Covid-19, em março de 2020, Bolsonaro editou medida provisória para alterar a Lei da Quarentena, dificultando o acesso a dados relativos à pandemia. Em dezembro do mesmo ano, retirou do TCU poderes para julgar denúncias com base na lei.
Mais recentemente, quem trabalha para dificultar o acesso à informação ganhou um novo documento para deturpar: a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Por meses antes da vigência da lei, especialistas da área vinham alertando que proteção de dados não deveria servir como obstáculo a informações de interesse público, já que a própria lei elenca como um de seus fundamentos “a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião”; e que ela tampouco se presta a habilitar censura, já que a atividade estritamente jornalística é expressamente excluída de sua incidência. O acesso a informações está no coração da proteção de dados: a existência de cadastros de dados pessoais secretos é rechaçada por toda a comunidade; o primeiro fundamento para um direito fundamental à proteção de dados no Brasil é o dispositivo constitucional que assegura acesso a dados através da ação de habeas data.
A LGPD não deveria ser pretexto para restringir de plano o alcance da LAI, até porque a legislação de proteção permite o tratamento de dados para o cumprimento de obrigações impostas por outras leis. Uma deferência genuína tanto à LAI quanto à LGPD exigiria que o governo se esforçasse em pensar formas de atender a pedidos sem divulgar dados pessoais desnecessários ou excessivos, ou informando os receptores das informações sobres os limites legais à sua utilização. Ao invés disso, a LGPD tem sido presa dessa renovada cultura da opacidade: muitas das recentes recusas de fornecimento de informações pelo governo federal vêm sendo lastreadas em interpretações tortas sobre a proteção de dados pessoais.
Foi assim que o Ministério da Economia negou dados sobre autuações de empresas por trabalho escravo à agência de jornalismo Fiquem Sabendo, embora a LGPD limite o conceito de dado pessoal às pessoas naturais, o que exclui pessoas jurídicas de sua proteção. A CGU do governo Bolsonaro reforçou a negativa, justificando-a pelos riscos de “prejuízos” aos “negócios” e à “imagem” de pessoas físicas e jurídicas, embora tenha rejeitado a invocação da LGPD. Eliminou-se o erro jurídico grosseiro, mas manteve-se a conclusão a que ele havia conduzido. A postura do Ministério da Economia e da CGU teve um quê de afronta ao STF. Cerca de um ano antes, uma decisão do tribunal já havia declarado a constitucionalidade da divulgação desses dados, que compõem a chamada “lista suja”. Na ocasião, o tribunal invocou justamente a LAI para defender a publicidade dos dados, de “inequívoco interesse público”.
O Ministério da Saúde deu outros notórios exemplos de restrição ao acesso de informações invocando justificativas legais e impertinentes. Em agudo processo de militarização no ano passado, passou a negar cada vez mais pedidos de acesso à informação. Só entre março e maio de 2020, aumentaram em cerca de 69% os pedidos negados em comparação com meses anteriores do ano. Quase metade deles teve como justificativa uma suposta proibição ao “tratamento adicional de dados”, mesmo antes da vigência da LGPD (a lei passou a valer apenas em setembro de 2020). Um levantamento da Fiquem Sabendo indicou que o MS foi o órgão do governo federal que mais ignorou pedidos de acesso à informação entre janeiro e abril de 2021.
Alegada preocupação do governo com a proteção de dados pessoais, na verdade, parece pretexto. Não foram poucas as iniciativas governamentais questionáveis do ponto de vista da proteção de dados, como a criação de gigantescos cadastros unificados de cidadãos e compartilhamento de informações excessivas e desnecessárias. Vale lembrar que o mesmo governo federal que hoje desfila suposta deferência à LGPD reiteradamente retardou a entrada em vigor da lei no ano passado.
Ao sancionar, em 2019, a lei advinda da MP 871, que tinha por justificativa a realização de um “pente fino” no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), Bolsonaro vetou o dispositivo que proibia o compartilhamento de dados de beneficiários do INSS com empresas privadas. Sob a fachada de evitar fraudes na Previdência, ele acabou enxertando a possibilidade de uso dos dados pessoais por bancos e empresas, para fazer marketing direcionado e facilitar empréstimos, em evidente violação ao princípio da finalidade, consagrado na LGPD.
No ano seguinte, Bolsonaro editou a MP 954, determinando que as teles entregassem dados telefônicos de todos os brasileiros para realização da Pnad contínua. A medida, obviamente inconstitucional por requisitar dados pessoais muito além do necessário para a pesquisa, foi derrubada no STF.
No mesmo ano de 2020, Bolsonaro não viu problemas em sancionar a criação de um cadastro nacional dos condenados por estupro, que previu a montagem de um banco de dados com informações sobre características físicas, impressão digital, perfil genético, bem como fotos dos locais de moradia e trabalho dos condenados. A norma não prevê limitações de tempo de armazenamento dos dados nem cautelas mínimas de segurança da informação para garantir proteção adequada aos registros.
Bolsonaro também editou decreto que facilita o compartilhamento de dados pessoais entre órgãos do governo sem a necessidade de consentimento expresso dos cidadãos, em complemento à instituição do Cadastro Base do Cidadão. Outras iniciativas de compartilhamento de dados também se seguiram, como aquela entre a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) para compartilhar dados pessoais de condutores, posteriormente revista.
Medidas como essas são o pesadelo de quem se importa genuinamente com proteção de dados, pois abrem caminho para armazenamentos, acessos e compartilhamentos em quantidades excessivas, aumentando as chances de que os titulares percam controle sobre suas informações pessoais ou de que incidentes de segurança, como a recente violação do cadastro de Átila Iamarino no DataSus, venham a prejudicá-los.
Além da interpretação enviesada de leis, o governo federal tem se mostrado propenso a trabalhar contra a publicidade de informações públicas através da remoção, da não produção, do incremento da dificuldade e da desinformação proposital sobre dados de inegável interesse público. Transparência não diz respeito apenas à disponibilização de informação via requerimentos, mas também à produção e à acessibilidade tempestiva a informações claras, corretas, atualizadas, com o objetivo de bem informar os cidadãos. O governo atual tem se notabilizado pelo oposto disso, inclusive com o envolvimento pessoal do presidente da República na disseminação de informações falsas, especialmente nos assuntos relacionados à Covid-19.
As ocultações de dados pandêmicos formam mosaico exemplar a esse respeito. O crescente atraso no fornecimento de dados epidemiológicos pelo Ministério da Saúde levou à já mencionada omissão temporária do número total de mortes por Covid-19, em um dos momentos mais críticos da pandemia. A pasta ainda vinha divulgando seletivamente nas redes dados de pacientes “recuperados” e “em recuperação” da Covid-19 desde abril de 2020. Organizados pela Secom, tais dados vieram à tona após reclamação do então ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, sobre uma “cobertura maciça de fatos negativos” da pandemia. “Placar da Vida” foi o nome escolhido para a iniciativa enganadora. A ideia era ludibriar a pretexto de informar.
Ilações sobre a divulgação de informações prejudiciais ao governo também são disseminadas na agenda (anti)ambiental. Desde 2019, o presidente e seus próceres criticam a atuação do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) no monitoramento do desmatamento e das queimadas. Em julho daquele ano, Bolsonaro sugeriu receber acesso prévio aos dados sobre desmatamento na Amazônia para não ser “pego de calças curtas“, sugerindo o respeito à “hierarquia e disciplina” na divulgação. Acusado de conspirar com alguma ONG contra o governo – outra estratégia de desinformação, pelo descrédito à análise técnica especializada – o então presidente da instituição, Ricardo Galvão, foi demitido logo após.
Em julho do ano seguinte, a coordenadora-geral de acompanhamento do desmatamento na Amazônia, Lubia Vinhas, foi exonerada três dias após a divulgação de dados sobre a aceleração do desmatamento na região. Em setembro, o vice-presidente Hamilton Mourão acusou funcionários do Inpe de fazerem oposição ao governo por divulgarem dados negativos e sugeriu uma “análise qualitativa” das informações produzidas, com “ajustes e correções” para sua “expressão da verdade”. O descrédito aos dados levou até à sugestão de uma nova agência de monitoramento por satélites na Amazônia. Em 2021, o diretor do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), órgão ligado ao ministério da Agricultura, também disse em live que o Inpe não iria mais divulgar informações sobre queimadas, o que foi logo em seguida revertido.
Na capilaridade dos órgãos federais, diversos dados antes disponíveis saíram do ar ou foram guardados em páginas de acesso mais difícil, a pretexto da reformulação do portal do governo federal. No sítio do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, os muitos relatórios com dados para embasar políticas públicas de atenção à saúde da mulher sumiram da aba de publicações do órgão, que é o local onde instintivamente se procura o que quer que tenha sido produzido para publicação pela pasta. Até a lista de programas sobre temas como saúde da mulher sumiu da página. Quem não souber de sua existência de antemão, e sair à caça dos arquivos e normas específicas usando buscadores de internet, provavelmente não chegará a eles. Ainda na pasta de Damares Alves, um relatório sobre violações de direitos humanos pelo Disque 100, publicado em 2020, deixou de incluir dados sobre violência policial. Nos anos anteriores, os números mostravam tendência ascendente de violência policial contra mulheres. Os dados foram incluídos apenas quando a questão foi judicializada.
Outra prática abusiva difundida de descaso do atual governo pela transparência: atrasar tanto quanto possível a divulgação de dados solicitados. Com isso, informações que interessam a agendas inflamadas do debate público perdem o tempo ótimo de relevância jornalística. Essa prática tornou-se padrão de conduta do Gabinete de Segurança Institucional, que aumentou de um a três meses o tempo de resposta às solicitações. Atualmente, também há 930 bases de dados do governo federal – boa parte delas relativas a temas ambientais – aguardando, sem pressa, seu momento de divulgação.
Finalmente, há dados que o governo simplesmente desistiu de produzir. A incerteza sobre a realização do Censo Demográfico pelo IBGE ilustra esse ponto. O levantamento, feito pela última vez em 2010, foi adiado em razão da pandemia em 2020 e, devido a severo corte de verba, teve sua realização inviabilizada em 2021 (embora assegurada pelo Judiciário). Com isso, pesquisadores e gestores são forçados a se amparar em dados obsoletos para realizar análises e desenhar políticas públicas.
Um último de uma série de atos da teatral redução de transparência é a desidratação da possibilidade de escrutínio público. O governo Bolsonaro, avesso à crítica pública, abandona padrões republicanos e adota uma forma de agência personalizada, impulsionada tanto por desavenças ideológicas quanto pelo desejo de obter benefícios individuais, como promoções e nomeações. Ser transparente, nesse sentido, implica tanto respeitar e considerar as críticas públicas quanto não usar poderes públicos para intimidar quem fala contra o governo.
Na contramão disso, vários agentes públicos vêm se valendo de suas posições para suprimir, de várias maneiras, opiniões de quem seja percebido como adversário do governo de Jair Bolsonaro. Dentro do Poder Executivo, ninguém se notabilizou tanto nesse sentido quanto o ex-AGU e ex-ministro da Justiça André Mendonça, cuja sabujice foi premiada por Bolsonaro com uma indicação ao Supremo Tribunal Federal. Mendonça mostrou sua fidelidade ao chefe, e sua infidelidade à Constituição, fazendo amplo uso da Lei de Segurança Nacional para intimidar críticos do governo. Atualmente, esse pódio inglório é ocupado pelo secretário de Cultura Mario Frias, que tem se revelado uma espécie de encarnação humana da violação ao princípio constitucional da impessoalidade. A pasta de Frias abertamente usa todos os artifícios possíveis para garantir que nenhum projeto que ele perceba como infiel ao bolsonarismo tenha chances de receber qualquer apoio. Isso inclui até mesmo a exigência de vacina para frequentar eventos culturais, obrigação imposta por muitos estados e prefeituras, que não pode ser ignorada.
A era Bolsonaro se notabiliza, porém, pela adesão de agentes de destaque de órgão de fiscalização e controle, de quem se supõe algum distanciamento crítico em relação ao governo, a essa gincana aberta da subserviência. A Controladoria-Geral da União constrangeu professores da Universidade Federal de Pelotas a assinarem um termo de ajustamento de conduta após abertura de processo disciplinar por “manifestação desrespeitosa e de desapreço direcionada ao presidente da República”, em março deste ano. Pouco tempo antes, o Ministério da Educação também havia encaminhado ofício às universidades federais solicitando providências para prevenir e punir “atos político-partidários” – leia-se, críticos ao governo –, mas voltou atrás após grande repercussão negativa.
O quadro de degradação é tamanho que nem mesmo membros de destaque do Ministério Público e do Poder Judiciário viram problemas em dar as mãos à ciranda do cala-boca. Conrado Hübner Mendes, professor da USP e pesquisador do Laut, enfrenta ação penal, processo administrativo e inquérito policial em razão de tuítes e colunas jornalísticas críticas ao ministro do STF Kassio Nunes Marques e à omissão funcional do procurador-geral da República (PGR) Augusto Aras. Aras e André Mendonça entabularam uma nada discreta disputa por uma vaga no STF no último ano, na qual também competiram, como azarões, ministros do STJ.
A revista Science, um dos periódicos de maior circulação científica no mundo, descreveu o Brasil como “um ambiente hostil” para professores e pesquisadores. Partindo de notícia sobre portaria do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) que dava a um diretor da instituição a prerrogativa de barrar a publicação de textos científicos escritos pelos servidores, muitos dos quais são também acadêmicos, a revista traçou um cenário tenebroso. Vários cientistas, com medo de perderem seus empregos e até sua integridade física, estariam “falando menos do que gostariam” e até deixando de assinar manifestações públicas – como se deu em nota de denúncia publicada pela Climate Social Science Network. A publicação também lembrou o caso do cientista Marcus Lacerda e de outros 27 pesquisadores, que receberam ameaças de morte e foram alvo de inquérito civil do Ministério Público Federal (MPF) em meados de 2020 pela condução de estudo sobre os perigos da cloroquina para o tratamento de Covid-19.
A hostilidade também se estende a membros da sociedade civil. Avultam-se os casos de opositores do governo que viraram alvo de investigação por repreender condutas do governo ou do presidente da República. No Distrito Federal, a Polícia Militar (PM) prendeu cinco manifestantes com uma faixa de “Bolsonaro genocida”, sob acusação de violação da Lei de Segurança Nacional (LSN), revogada meses depois pelo Congresso Nacional. Em março de 2021, a Polícia Federal (PF) deteve João Reginaldo da Silva Júnior em Uberlândia por tuíte sarcástico ao presidente e intimou ao menos 25 pessoas a depor por outras postagens críticas.
Processos e investigações contra críticos caminham lentamente. Seu objetivo não é condenar os alvos, mesmo porque seus fundamentos jurídicos são sempre frágeis. Servem, apenas, para espalhar medo e ostentar bajulação subserviente a Bolsonaro, por carreirismo ou convicção ideológica. A ampla e merecida publicidade que a mídia corretamente lhes dá, paradoxalmente, potencializa seus efeitos intimidatórios.
O antídoto seria a punição dos agentes públicos responsáveis pelos abusos, mas como mostra o caso de Mendonça, o mais provável é que, se caírem, caiam para cima. Aos amigos, a leniência com abusos de poder e a proteção de leituras deturpadas da LAI e da LGPD. Aos inimigos, a LSN, os inquéritos policiais, os processos disciplinares e as negativas de acesso a informações públicas.
Fonte: piaui.folha.uol.com.br