Por atuar como cuidadora de idosos em um asilo paulistano, Maria Julia (nome fictício) fazia parte do grupo prioritário para vacinação contra o novo coronavírus. Rejeitou a imunização e seguiu trabalhando. Os sintomas de dor de garganta e febre Maria Julia associou a uma gripe. Quando veio a falta de ar, decidiu testar para covid. Positivo. Recorreu aos remédios do — suas palavras — “kit do nosso presidente”. Torcendo em casa pela cura, teve os planos interrompidos por uma enorme dificuldade para respirar. No pronto socorro da rede pública, uma tomografia revelou grave comprometimento dos pulmões. O caso inspirava cuidados em UTI, mas no dia da internação, 22 de março, o hospital só dispunha de leitos improvisados.
“Ela estava no cateter de oxigênio sofrendo para caramba. Superculpada, superarrependida. Achou que as coisas iam funcionar, que não era uma doença perigosa. Chorou durante toda a nossa conversa”, afirma Ariel (nome fictício), profissional de saúde que atua na linha de frente do combate à covid na cidade de São Paulo. Por temor de represálias, a fonte vetou a divulgação de seu nome ou de outras informações que possibilitem identificá-la. Detalho ao final do texto os motivos de pedido de sigilo.
Ariel conta que casos como o de Maria Júlia são “tristemente comuns”. “Muitos pacientes falam que não usavam máscara, que tomaram ivermectina ou o ‘kit covid'”. Em algumas situações, há descrença quanto à própria existência da doença. Caso da aposentada Esther, que deu entrada com quadro severo de falta de ar. Mesmo necessitando de ajuda externa para respirar, Esther insistia: “Essa doença é uma invenção”. A todo tempo tirava a máscara de oxigênio e, aos médicos, exigia ir para casa.
A alternativa da equipe foi organizar uma videochamada com um parente próximo. “Expliquei ao familiar que a ideia era incentivá-la a seguir o tratamento. A capacidade pulmonar estava piorando rápido e a possibilidade de intubação era real”, conta Ariel. O combinado foi cumprido. O parente mencionou um caso de um conhecido internado que havia vencido a doença. “Eu não tenho nada, pede alta para eles”, respondia Esther.
O médico que acompanhava a ligação propôs um teste: “Vamos tirar a máscara de oxigênio?”. Ofegância imediata. Em poucos segundos, o monitor de saturação registrou queda de 90% para 75%. “Não importa qual doença seja, a senhora precisa de ajuda”, afirmou Ariel. “Vamos continuar investindo no tratamento”. Esther concordou. Intubada após piora, Esther morreu dois dias depois da ligação.
“Vejo relação direta entre as falas do presidente minimizando a pandemia e esse tipo de caso”, diz a profissional de saúde. “Isso nos afeta porque as pessoas que aderem ao ‘tratamento precoce’ ficam em casa esperando uma melhora que não vem, porque o ‘kit’ não funciona, e chegam ao serviço de saúde mais graves”.
Às vezes, o descaso tem custos maiores. Maria Julia, cujo relato abre este texto, seguiu frequentando a casa dos pais mesmo após apresentar sintomas. Ambos pegaram covid e foram internados em UTIs. Um deles está intubado. “Contaminei minha família”, lamentava-se para a equipe médica. Em telefonemas com parentes, as recomendações mudaram. “Se protege direitinho, usa máscara, por favor”. A cuidadora apresentava quadro estável ao ser transferida para uma UTI com melhor estrutura em hospital da rede pública.
Sobre o sigilo da fonte: na instituição em que a profissional de saúde atua, vigora uma norma que proíbe funcionários de conceder entrevistas sem autorização da assessoria de comunicação. Comum no serviço público, esse tipo de mecanismo é uma forma de tutelar o fluxo de informações. Mesmo conflitando com a Constituição (“É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”), as chamadas “leis da mordaça” causam constrangimento e medo em servidores em todo o país. A responsabilidade judicial por uma informação anônima é de quem a publica. A coluna concordou com o pedido de off-the-record (informação cuja fonte é mantida em sigilo) pela relevância do relato.
Fonte: uol.com.br