Aeleição americana está sendo decidida pelo VAR. Como se não bastasse a agonia da espera interminável, o time vermelho acusa os azuis de roubo, alega que o jogo já tinha acabado quando estava com vantagem no placar e decreta que o árbitro de vídeo foi corrompido. Os vermelhos querem melar a partida e cumprem a promessa de levar a disputa para o tapetão. Está configurada na maior potência do planeta uma crise política que pode se desdobrar em crise institucional.
Caso se confirme a derrota de Donald Trump por uma margem apertada, é bastante improvável que ele recue de sua loucura e aceite o resultado antes de esgotar na esfera judicial todos os recursos que lhe cabem. Ainda que perca de novo no tapetão – o que parece, apesar de tudo, mais provável –, Trump terá lançado mais suspeitas sobre o processo eleitoral – já bastante bizantino, além de moroso – e desacreditado um pouco mais a democracia. Com o presidente disposto a dobrar a aposta no golpismo e uma sociedade fraturada ao meio, as atenções se voltam para o comportamento dos eleitores nas ruas e para a capacidade de resistência das instituições. Os protestos já pipocam pelo país.
A preocupação com o respeito às regras do jogo ultrapassa as fronteiras americanas. Ainda na quarta-feira, quando Trump despontava na frente em estados estratégicos, mas com a apuração ainda incipiente, a Alemanha deu o tom da apreensão internacional. Em nota, o ministro das Relações Exteriores do país falou que é preciso “mostrar paciência e esperar” a contagem dos votos, reiterando a seguir que as lideranças políticas devem fazer “a promoção da confiança no processo eleitoral e nos resultados”. Horas antes, em entrevista à tevê pública alemã, o ministro da Defesa de Angela Merkel se dizia preocupado com a “situação muito explosiva” nos Estados Unidos e alertava para o risco do que chamou de “crise constitucional”.
Por mais preocupante que seja, crise nenhuma seria pior do que a vitória de Donald Trump. Se ele ainda obtivesse o direito de exercer o segundo mandato, talvez fosse melhor chamar logo de volta os dinossauros e começar tudo de novo.
Havia, de qualquer forma, a expectativa de que a derrota do trumpismo fosse um pouco mais convincente. Sobretudo porque a escolha do presidente se deu num cenário de acentuado revés econômico e impacto brutal de uma pandemia que já matou mais de 230 mil pessoas em território norte-americano. O desdém de Trump no enfrentamento da tragédia sanitária só é comparável ao que fez por aqui, em Terra Brasilis, o seu imitador barato. Com a virtual derrota de Trump, Jair Bolsonaro fica órfão de sua grande inspiração. Ao mesmo tempo, se vê transformado em figura de proa do negacionismo e assume, à sua revelia, o posto de grande pária internacional.
Foi, coincidentemente, em viagem aos Estados Unidos que o presidente brasileiro declarou ter provas de que sua eleição havia sido fraudada: “Eu fui eleito no primeiro turno, mas, no meu entender, teve fraude. E nós não temos apenas a palavra. Temos comprovado. Brevemente quero mostrar, porque precisamos aprovar no Brasil um sistema seguro de apuração de votos”, disse Bolsonaro em Miami, no dia 9 de março. As provas da fraude jamais apareceram. As palavras do presidente da República são tão confiáveis quanto as memórias de Brilhante Ustra sobre a ditadura.
No domingo, dia 15 de março, já de volta ao Brasil, Bolsonaro participaria do famigerado ato público, entre muitos que ocorreriam ao longo dos meses seguintes, contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. A pandemia, àquela altura um drama mundial já reconhecido, escalava fortemente no país. Mesmo assim, Bolsonaro desafiou as recomendações médico-sanitárias e provocou aglomerações em frente ao Palácio do Planalto. Conforme se soube mais tarde, a primeira morte por Covid-19 registrada no Brasil ocorreu em 12 de março, três dias depois das declarações mentirosas de Bolsonaro em Miami, três dias antes da pantomima que ele fez para disseminar o vírus do autoritarismo.
Com exceção da pandemia, nada era exatamente novo. No final de setembro de 2018, faltando pouco mais de uma semana para o primeiro turno, Bolsonaro já havia dito de maneira taxativa: “Não aceito resultado diferente da minha eleição.” Na ocasião, o candidato sugeria, sem nenhuma evidência, que as urnas eletrônicas eram vulneráveis a fraudes e pregava que os votos no Brasil deveriam ser impressos. É mais ou menos o que seu ídolo está dizendo hoje, com sinais trocados: o voto pelo correio ou a urna eletrônica assumem o papel do vilão, a depender de quem fala, mas a sintaxe da conspiração de fundo paranoico é a mesma.
Essa é uma retórica tão delirante que tendemos a desdenhar dela depois do espanto inicial. Como ele teve a cara de pau de dizer isso? Pouco importa. Afinal, quem é que vai acreditar nessas sandices? Muita gente, infelizmente. Em seu livro A Máquina do Ódio, a jornalista Patrícia Campos Mello menciona o levantamento feito por agências de checagem a respeito das fake news na campanha de 2018. No primeiro exemplo, a Agência Lupa, em parceria com o grupo de pesquisas Eleições sem Fake, descobriu que “as notícias falsas que mais se espalharam pelo WhatsApp eram variações de denúncias de fraude ou mau funcionamento nas urnas eletrônicas”. A agência Aos Fatos, por sua vez, chegou à conclusão de que “o conteúdo falso com maior número de compartilhamentos foi a mensagem que pretendia denunciar que uma urna eletrônica completava automaticamente o voto no candidato do PT”.
Voltando ao presente, ainda é muito cedo para arriscar qual será o impacto real da provável vitória de Biden sobre o comportamento de Bolsonaro e seu mandato. Uma coisa é certa: sem seu deus, o Brasil de Bolsonaro estará mais isolado no mundo. Especulando um pouco, é possível que a partir de agora o governo faça movimentos combinados de trégua e radicalização. A concessão mais esperada estaria na condução da política ambiental, com a eventual troca do ministro, que seria premiado com a pasta do Turismo, por exemplo. Até porque, no ritmo em que Ricardo Salles está passando com a boiada, é possível que a floresta acabe antes do mandato em curso.
Acenando a Biden e às novas demandas do mundo corporativo com o compromisso de entregar alguma redução na escalada da predação do ambiente, Bolsonaro ficaria politicamente mais desimpedido para avançar na agenda predatória que realmente lhe importa. Ela poderia estar reunida num imaginário Mami, o Ministério das Armas, da Morte e da Informação. Na falta dele, essa agenda passa pela presença cada vez maior das armas de fogo na vida civil, pela ampliação dos gastos com as polícias e as Forças Armadas, pelo desenvolvimento de um sistema de informações de inspiração autoritária que envolve a Abin, a inteligência militar e setores da Polícia Federal. Carregando um pouco nas tintas, o que está no horizonte deste governo é, de um lado, a criação de uma milícia civil, e, de outro, a montagem de uma polícia política. Há uma intersecção entre esses dois conjuntos em fase de expansão. É nessa intersecção que habita espiritualmente o clã Bolsonaro.
Tudo isso pode soar exagerado, mas lembremos uma vez mais da famigerada reunião ministerial de abril, quando o presidente, visivelmente alterado, cobrou de ministros a assinatura urgente de um decreto para destravar a venda de armas e munições a civis e disse que podia e iria, sim, intervir na superintendência da Polícia Federal do Rio.
Há nessa fala, em primeiro lugar, a preocupação reativa para proteger da lei a família e seus agregados encrencados com a justiça. Mas entendo que exista também o propósito de atacar antes de se defender, usando a máquina policial de informações contra eventuais adversários políticos. Alguém duvida que o bolsonarismo pretenda contar com esse arsenal de guerra na campanha pela sucessão em 2022?
Em Crises da Democracia, publicado nos Estados Unidos em 2019 e no Brasil neste ano, o cientista político polonês Adam Przeworski afirma logo no prefácio, referindo-se à eleição americana de 2016: “Se Trump tivesse perdido, muita gente que corre hoje para escrever livros como este – e me incluo neste grupo – estaria tratando de outros assuntos. Mas as condições econômicas, sociais e culturais que levaram Trump à Casa Branca teriam sido as mesmas.”
O livro é excelente. No capítulo final, intitulado O Que Pode ou Não Acontecer?, Przeworski primeiro se cerca de cuidados, recorrendo a uma boutade de J. K. Galbraith: “A única função das previsões econômicas é fazer a astrologia parecer respeitável.” Ao que o próprio Przeworski acrescenta: “Arriscar previsões políticas é ainda pior.” Isso não o impede de fazê-lo. Embora seu prognóstico seja anterior à eclosão da pandemia, o cientista político afirma que os partidos de extrema direita não continuarão a alcançar o poder como se fossem coelhos procriando pelo planeta. “Meu palpite é que o gênio saiu da garrafa e já cresceu o que tinha que crescer”, ele diz.
O sopro de otimismo, no entanto, é logo matizado por considerações bem mais sombrias sobre o futuro. Retomando o argumento que apresenta no prefácio sobre as condições históricas que estão na raiz da ascensão de um fenômeno como Trump, Przeworski sugere que a tendência de crescimento lento da economia, a persistência da desigualdade e da segregação social e racial, o encolhimento dos bons empregos, entre outras tantas coisas, induzem as forças políticas tradicionais a incorporarem em seu portfólio parte da agenda e das soluções da extrema direita. Cito: “O risco onde a direita radical não chega ao poder é que os governos cedam demais no acolhimento de demandas xenófobas e racistas e restrinjam liberdades civis sem melhorar as condições materiais das pessoas mais insatisfeitas com o status quo.”
Volto a Bolsonaro. Penso em tudo o que já fez para o desmanche do arremedo de civilização que almejamos um dia ser. Penso na ameaça que ainda representa se for reeleito. E penso no que diz Przeworski. Talvez Bolsonaro não sobreviva pessoalmente a 2022. Talvez ele esteja apenas pavimentando a estrada do que será, depois dele, o novo normal.
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Repórter da piauí e apresentador do Foro de Teresina.
Fonte: piaui.folha.uol.com.br