O Brasil ainda não conhece com profundidade os horrores de sua ditadura militar (1964-1985). Um levantamento inédito do UOL, feito pela repórter Amanda Rossi, descobriu 24 casos de presos políticos internados pela ditadura militar em instituições psiquiátricas, em nove unidades da federação. Pelo menos 22 foram submetidos a tortura em prisões comuns antes de serem internados. A reportagem mostra que os agentes da ditadura enviavam presos políticos que resistiam às torturas — e se mantinham vivos e calados — para instituições psiquiátricas onde seguiam sendo submetidos a diferentes formas de violência, como eletrochoques e insulinoterapia. É o caso de pelo menos 21 homens e três mulheres, internados compulsoriamente entre 1964 e meados de 1970, a maioria jovens.
Eles enlouqueceram de tanta tortura, passaram a ouvir vozes, a alucinar e adquiriram confusão mental, segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade. É um estado “além da dor”, como descreve Silvia Montarroyos à reportagem do UOL. Em uma situação extrema como essa, a loucura chega a ser um meio de sobrevivência, como se o corpo apelasse para a outra realidade, exausto de lidar com o terror real.
Uma das piores formas de tortura utilizada era o estupro cometido por agentes da ditadura diante dos companheiros das mulheres presas. Aconteceu com Silvia, aconteceu com Darci Myaki.
É muito íntimo e duro falar sobre isso, mas acho que tem que ser registrado, por mais que me doa. Me tornei uma mulher estéril e sem companheiro. O olhar frio dele [Capitão Ubirajara] me perseguiu durante muitos anos.”
Darci Myaki, em audiência da Comissão Nacional da Verdade É um grau de crueldade difícil até de imaginar.
Bolsonaro na contramão da memória, do reconhecimento e da reparação
A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi instituída em maio de 2012 com a finalidade de apurar graves violações de direitos humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988 por agentes do Estado. Relatar torturas, relembrar esse período, reviver a prisão, é muito delicado. Mas muito importante: a memória, o reconhecimento e a reparação são as únicas garantias de evitar que isso ocorra novamente.
A comissão foi chamada de “balela” pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), em julho de 2019, quando ele ofendeu a memória de Fernando Santa Cruz Oliveira, pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. Na ocasião, Bolsonaro sugeriu que sabe como Fernando, estudante de direito, desapareceu. Em março do mesmo ano, o presidente disse que queria comemorar o golpe de 1964, ignorando os crimes cometidos.
Desde então, o presidente vem minimizando o terror da ditadura, incitando o ódio contra um comunismo (que não existe), esgarçando o Estado democrático de direito, antecipando uma possibilidade de fraude para as próximas eleições. A proximidade das Forças Armadas com o bolsonarismo só piora esse quadro.
“Aqueles responsáveis políticos que não tomam por bandeira principal a defesa irrestrita dos direitos humanos, da verdade, da memória e da Justiça representam risco alto à democracia”, disse Baltasar Garzón, o ex-juiz espanhol que decretou, em 1998, a prisão do ex-ditador chileno Augusto Pinochet e transformou o direito internacional. É como abrir com os dedos uma ferida que nunca cicatrizou. É uma fissura em que se encaixam medidas antidemocráticas. Nesse buraco cabem graves violações de direitos humanos. Trata-se de mais uma violência — dentre as tantas da ditadura militar — e que fragiliza a democracia.
Fonte: noticias.uol.com.br