A atuação de lobistas em Brasília entrou em foco durante a CPI da Covid a partir de duas linhas de investigação envolvendo a aquisição de vacinas pelo Ministério da Saúde: os casos Davati e Covaxin.
Em meio ao colapso do sistema de saúde durante a pandemia e a forte demanda por vacinas, foram mobilizados articuladores do chamado “baixo clero” —a exemplo do policial militar Luiz Paulo Dominghetti, lotado no interior mineiro— e personagens de convívio direto do alto escalão do governo federal, como Marconny Albernaz de Faria, amigo de Jair Renan, filho do presidente Jair Bolsonaro. Marconny nega a atuação, mas foi identificado pelos senadores como suposto lobista da empresa Precisa Medicamentos.
A apuração da CPI revelou negociações de terceiros com o ministério em diferentes níveis e proporções, em um cenário que ficou conhecido nos bastidores da comissão como “farra das vacinas”. O material obtido pelos senadores consta no texto final do relator, Renan. Calheiros (MDB-AL), aprovado na terça-feira (26) após seis meses de interrogatórios e audiências.
Caso Davati
O lobismo é uma atividade ainda não regulamentada no Brasil e que consiste em uma pressão de grupos organizados para exercerem influência em decisões políticas a partir de determinados interesses, sobretudo no Congresso Nacional. O primeiro caso de lobby que ganhou projeção na CPI surgiu depois dos relatos de Luiz Paulo Dominghetti, policial militar lotado na pequena cidade de Alfenas, em Minas Gerais, e que viajava a Brasília para tentar emplacar negociações milionárias em vendas de vacinas e outros produtos.
Dominghetti tornou-se figura pública depois de conceder entrevista à Folha de S.Paulo. Ele relatou que o então diretor de logística do Ministério da Saúde, Roberto Dias, havia solicitado propina para concretizar uma negociação de imunizantes. Com suposta intermediação do policial, o governo compraria um lote de existência suspeita de 400 milhões de doses da vacina Oxford/AstraZeneca distribuídos pela Davati Medical Supply, empresa americana sem sede ou registro formal no Brasil.
Dominghetti chegou a participar de reuniões no Ministério da Saúde para tentar promover o negócio. Durante as conversas, contou com a ajuda de outros intermediários que também se encaixaram na teia de lobismo revelada pela CPI.
Um deles é o reverendo Amilton Gomes de Paula, líder da Secretaria Nacional de Assuntos Humanos —entidade que, apesar do nome, não pertence à estrutura pública e se resume a atividades filantrópicas— e Marcelo Blanco, militar e ex-assessor do Ministério da Saúde que reconheceu, em depoimento à comissão, o interesse em explorar o mercado privado de vacinas.
Depois da entrevista à Folha, publicada em 29 de junho, Dominghetti foi convocado a prestar esclarecimentos no Senado e reafirmou à CPI todo o conteúdo do relato inicial. Segundo ele, a cobrança de propina feita por Dias ocorreu em fevereiro deste ano, durante jantar no restaurante Vasto, em Brasília.
Na ocasião, o ex-diretor de logística da Saúde teria solicitado vantagem ilícita de US$ 1 por cada uma das 400 milhões de doses de vacina. O pedido não teria sido levado adiante, segundo Dominghetti, pois o valor do suposto lote de imunizantes seria fixo e definido pela Davati. Dias negou qualquer solicitação indevida, e disse que o negócio não avançou porque Dominghetti não entregou os documentos necessários para comprovar a idoneidade da Davati e da proposta feita.
Personagens revelados por Dominghetti tornaram-se peças centrais também em outras linhas de investigação, como a da compra da vacina indiana Covaxin, intermediada pela Precisa Medicamentos, além de outros negócios da empresa com o governo federal. Após denúncias e suspeitas de irregularidades levantadas pela CPI, o contrato para a Covaxin foi cancelado.
Vasto portfólio
Análise do conteúdo do celular de Dominghetti mostrou que ele negociava dezenas de outros produtos, além das vacinas contra a covid-19. Mensagens de WhatsApp às quais o UOL obteve acesso revelam que ele atuava em conjunto com outros intermediários na oferta de medicamentos, equipamentos hospitalares, peixes, esmeraldas e até nióbio na busca de complementar o salário de policial.
A margem de lucro da rede de intermediação era dividida entre os participantes por meio de percentuais de “comissionamento” (prática conhecida como “overprice”). Em cada negociação, o policial e os parceiros estipulavam o valor que seria cobrado acima do preço original.
O overprice não é ilegal em negociações no setor privado, mas abre brechas para outros crimes financeiros, como lavagem de dinheiro, ocultação de patrimônio e ilícitos fiscais. Já no setor público, trata-se de crime de peculato e até estelionato. Renan recomendou o indiciamento de Dominghetti e Marcelo Blanco por corrupção ativa, do reverendo Amilton por tráfico de influência e de Roberto Dias por corrupção passiva, formação de organização criminosa e improbidade administrativa.
Alto clero em churrasco de advogada de Bolsonaro
A palavra lobista aparece sete vezes no relatório final da comissão, todas as vezes associada a Marconny Nunes Ribeiro Albernaz de Faria, suposto articulador da Precisa Medicamentos. Marconny afirmou à CPI que, “fosse um lobista, seria um péssimo lobista”, e que as conversas interceptadas em seu celular mostrariam apenas que tem “ótimos amigos” em Brasília.
As mensagens em posse da CPI, porém, apontam que Marconny supostamente teria participação em eventual esquema de corrupção para favorecer a Precisa em um processo de compra de testes de detecção de covid-19 pelo Ministério da Saúde. Há citações a uma pessoa indicada como “Bob”, que os senadores acreditam se tratar de Roberto Dias, informaram parlamentares.
Segundo Renan Calheiros, “ficou claro no depoimento que se tratava de um lobista”. “De fato, Marconny é pessoa muito bem relacionada no meio político de Brasília, inclusive no âmbito da família do presidente Jair Bolsonaro, sendo amigo íntimo do seu filho caçula, Jair Renan, que teria, inclusive, apresentado a própria mãe, a senhora Ana Cristina Bolsonaro, ao depoente.”
O suposto lobista reconheceu o vínculo de amizade com o filho “04” do presidente Bolsonaro. Ele disse que chegou a realizar a própria festa de aniversário num camarote de Jair Renan no Estádio Nacional Mané Garrincha, durante a pandemia. Marconny afirmou ainda que ajudou Jair Renan a “criar uma empresa de influencer” e o apresentou a um colega tributarista que poderia auxiliá-lo.
Embora tenha negado manter negócios com Ana Cristina, senadores afirmaram ter em mãos troca de mensagens que apontam suposta atuação dela a pedido de Marconny. Ao ler mensagens atribuídas a ações do suposto lobista de julho de 2020, o senador Rogério Carvalho (PT-SE) afirmou que Marconny também teria trabalhado em projeto previsto para ser apresentado ao presidente Bolsonaro.
Dois meses antes, disse, Marconny teria dito para a advogada de Bolsonaro em assuntos eleitorais, Karina Kufa, que entregou ao presidente uma carta na porta do Palácio da Alvorada. Questionado, Marconny silenciou, amparado em decisão do STF (Supremo Tribunal Federal). Karina Kufa teria sido a anfitriã de um churrasco em que Marconny conheceu outro possível lobista por senadores da CPI: o ex-secretário da Anvisa José Ricardo Santana, que também esteve no jantar do suposto pedido de propina por Roberto Dias.
Marconny e Santana aparecem nas mensagens que apontam suposta tentativa de favorecer a Precisa em compra do governo de testes rápidos de covid-19. Há citação a Marcelo Blanco e até mesmo um suposto passo a passo da “arquitetura do crime”, de acordo com senadores. Marconny negou que tenha feito lobby para a Precisa em relação à Covaxin. “Eu fiz uma viabilidade técnico-política e uma análise para a Precisa”, disse, sem detalhar o serviço prestado.
Em áudio apresentado pela CPI, José Ricardo Santana se apresenta ainda como articulador de uma força-tarefa. “Tudo isso dentro de atividades que venham contribuir substancialmente para a imagem do governo”, declarou ele a Marconny, segundo os senadores. O relatório final de Renan sugere o indiciamento de Marconny e Santana por “formação de organização criminosa”.
Tentativas de mais transparência empacadas
Propostas para regulamentar o lobby estão em discussão no governo federal e há projetos parados no Congresso que tratam do tema. A ideia é dar mais transparência para as atividades dos grupos sociais e econômicos que pressionam autoridades do Executivo e do Legislativo na construção de leis, regras e políticas públicas.
No entanto, não há previsão para que sejam votados.
Fonte: noticias.uol.com.br