A rejeição do governo Jair Bolsonaro às críticas de outros países sobre incêndios e desmatamentos na Amazônia e os ataques do chanceler Ernesto Araújo ao multilateralismo já foram uma política do governo brasileiro, durante a ditadura militar (1964-1985), e só resultaram em mais pressão e problemas sobre o Brasil. Acuado, alvo de seguidas críticas, o Brasil adotou, a partir da segunda metade dos anos 80, o caminho oposto ao agora tomado pelo governo bolsonarista: abriu-se para o diálogo internacional e para a busca de soluções para a Amazônia em conjunto com os países mais ricos.
O país redemocratizado promulgou, em 1988, uma Constituição que deu ao Ministério Publico poderes inéditos para a defesa do meio ambiente. Ao mesmo tempo, mandou fazer um amplo diagnóstico sobre o tema, o Programa Nossa Natureza, ainda no governo de José Sarney (1985-1990), em 1988, e criou uma agência especializada no combate aos ilícitos ambientais e no uso dos recursos renováveis, o Ibama, que reuniu o antigo IBDF e outras agências. Ampliou, ainda, a demarcação de terras indígenas, que se mostraram verdadeiras barreiras à destruição da Amazônia.
O primeiro presidente do Ibama e porta-voz do governo Sarney, Fernando César Mesquita, lembrou, em um artigo publicado no “Jornal do Brasil” em 2000, que no ano de 1988 “a repercussão internacional do desmatamento na Amazônia era tão séria que todos os financiamentos de bancos oficiais internacionais para o Brasil — BID, Bird, Eximbank, Comunidade Econômica Europeia — estavam suspensos para qualquer tipo de projeto econômico”. A nova postura brasileira desarmou espíritos e convenceu os países estrangeiros a financiar obras de infraestrutura, aumentar a importação de commodities como carne e soja e promover esforços integrados para projetos de conservação e fiscalização na região amazônica.
“A saída encontrada pelo Brasil na época foi dizer aos países mais ricos: ‘Em vez de criticar, por que vocês não vêm nos ajudar?’ Logo depois, começaram financiamentos e programas-piloto de preservação da floresta em pé, um deles com recursos do G-7 [grupo de países mais ricos]. O Brasil começou a dizer ‘estamos fazendo a nossa parte’. E isso foi dando autoridade, credibilidade e respeito ao país nos fóruns internacionais”, disse o jornalista especializado em ciência e meio ambiente Claudio Angelo, da coalizão não governamental OC (Observatório do Clima) e autor de “A Espiral da Morte” (Companhia das Letras, 2016).
Ditadura não queria “prejudicar o desenvolvimento” econômico
Os esforços do governo brasileiro não eram apenas retórica e começaram a dar resultados. Em 1988, quando o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) passou a divulgar taxas anuais de desmatamento, a destruição registrada na Amazônia foi de 21 mil km². No ano seguinte baixaria para 17,7 mil km². Em 1990 nova queda, para 13 mil km². O Brasil começou a demonstrar na prática que era possível conter o desmatamento.
O caminho adotado pela ditadura militar tinha sido bem diferente. Na base do lema “integrar para não entregar”, incentivou a ocupação da Amazônia, transferiu milhares de famílias para a região, subsidiou projetos agropecuários e financiou grandes projetos de infraestrutura, muitos dos quais se revelaram inúteis e desproporcionais, como a rodovia inacabada Transamazônica. Acima de tudo, rechaçava opiniões vindas de fora do país.
No começo dos anos 70, uma delegação da ditadura compareceu à conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente para defender que “o desenvolvimento econômico é o instrumento adequado para resolver, nos países subdesenvolvidos, os problemas de poluição e alteração ambiental vinculados em grande parte às condições de pobreza existentes”. Decidiu ainda “contrapor-se às proposições que resultem em compromissos que possam prejudicar o processo de desenvolvimento [econômico] dos países de baixa renda per capita”.
A ideia central era “defender basicamente a tese de que cabe aos países desenvolvidos — principais responsáveis pela poluição — o ônus maior de corrigir a deterioração do meio ambiente no plano mundial”. Essas frases — que facilmente poderiam constar do discurso de Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU (Organizações Nações Unidas) desta terça-feira (22) — foram diretrizes do governo brasileiro há quase 50 anos, em junho de 1972, durante uma conferência da ONU sobre o meio ambiente, em Estocolmo, na Suécia.
As orientações foram distribuídas a vários ministros por escrito, em um aviso classificado como secreto, pelo então secretário-geral do CSN (Conselho de Segurança Nacional), o general João Baptista Figueiredo (1918-1999), que se tornaria, sete anos depois, presidente da República. Um documento sobre as reuniões preparatórias mostra o incômodo dos brasileiros com as discussões: “As teses dos países desenvolvidos conflitam-se com as dos países em desenvolvimento, aqui incluído o Brasil; em vários documentos, há referências veladas ou insinuações à importância da região amazônica para o equilíbrio ecológico do meio ambiente mundial”.
O grupo preparatório anotou que “o Brasil não poderá fugir ao desgaste na defesa de suas teses, já que traduzem legítimos interesses nacionais”.
“Queimando a Amazônia”
Era um outro mundo, ainda dividido pela Guerra Fria, mas as preocupações com o meio ambiente começavam a se espalhar pelo planeta e o Brasil passou a enfrentar pressões internacionais para que contivesse a degradação ambiental em seu território. No momento da conferência da ONU de 1972, por exemplo, dois jornais suecos acusaram o país de “sabotar” os esforços da ONU.
Como uma evidência de que não havia viés ideológico nessas cobranças, mesmo depois do fim da ditadura as pressões sobre o Brasil continuaram. Em 1989, o país de José Sarney foi capa da revista norte-americana “Time” com o seguinte título: “Queimando a Amazônia: a floresta amazônica pode ser salva?” De acordo com a revista, a destruição da Amazônia “é uma das grandes tragédias da história”. Naquela época grandes incêndios devastaram o Brasil, a exemplo do que vivemos hoje. Na capa da “Time”, o desenho de uma fogueira na floresta imitava uma caveira.
Na sequência, uma imensa invasão garimpeira, com mais de 45 mil homens, provocou uma tragédia na Terra Indígena Yanomâmi, deixando mortos centenas de indígenas — os números variam de 600 a 2 mil índios mortos por doenças trazidas pelos garimpeiros entre o final dos anos 80 e início dos 90. A Funai (Fundação Nacional do Índio) divulgou na época que somente em 1989 haviam morrido 400 indígenas de malária levada pelos garimpeiros ao território indígena. As imagens de yanomâmis sendo resgatados na floresta ganharam o mundo, o que incentivou a campanha para a demarcação da terra indígena, enfim decidida em 1992 pelo então presidente Fernando Collor.
Redução do desmatamento
Mesmo enfrentando crises com grande repercussão internacional — como o pico de 29 mil km² desmatados na Amazônia em 1995 ou um grande incêndio que devastou aproximadamente um quarto do estado de Roraima em 1998 — o Brasil continuou no caminho do multilateralismo ao longo da década de 90. Ainda com Collor na Presidência, presidiu a Eco-92, uma espécie de certidão de nascimento do Brasil como referência ambiental na diplomacia. Sua opinião passou a ser levada muito em conta em todas as tratativas sobre o assunto. O Brasil “tinha o que mostrar”, pois trabalhava para proteger a Amazônia.
A partir de 1996, contudo, as taxas de desmatamento foram crescentes, gerando o temor de que o Brasil nunca conseguiria reverter essa tendência. Em 2004, no segundo ano do governo Lula, a taxa bateu o segundo pior índice da série histórica, com 27 mil km² destruídos. Foi o sinal derradeiro de alerta. Após um amplo esforço que somou fiscalização intensa, projetos de conservação e mais demarcações de terras indígenas, as taxas foram caindo ou se estabilizando ao longo das gestões dos ministros Marina Silva, Carlos Minc e Izabella Teixeira, que tinham uma ligação histórica com o tema do meio ambiente.
O desmatamento chegou, em 2012, a 4,5 mil km², a taxa mais baixa da série histórica até hoje — a título de comparação, o balanço do ano passado (que cobre agosto de 2018 a julho de 2019) atingiu 10,1 mil km², mais do que o dobro de 2012. A partir de 2012, as taxas voltaram a crescer, mas nunca nos níveis de 2004 ou anteriores àquele ano. Ao mesmo tempo, a força econômica do Brasil rural explodiu, com recordes seguidos de produção e exportação, numa demonstração de que preservar o meio ambiente não é o oposto de crescimento econômico.
“Inação calculada e ideológica”
De 2004 até o início do governo Bolsonaro, em janeiro do ano passado, o governo central incentivou diversas parcerias com países estrangeiros e organizações não governamentais, parte da receita de sucesso.
Com a chegada do bolsonarismo ao poder, contudo, tanto Bolsonaro quanto seus ministros Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Ernesto Araújo (Relações Exteriores) passaram a criticar abertamente o multilateralismo, chegando mesmo a colocar em dúvida a lisura das parcerias. Como no início do governo, quando Salles sugeriu que havia irregularidades no Fundo Amazônia, todo ele auditado e acompanhado em cada detalhe por diversos atores, incluindo o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). No final das contas nenhuma irregularidade foi demonstrada.
“O Brasil é o país mais megadiverso do planeta, com recursos ambientais de enorme relevância para a conservação da biodiversidade e a questão climática. Os recursos internacionais para apoio a nossos programas ambientais sempre foram importantes. Nos anos mais recentes, pode ser citado o apoio do Fundo Amazônia ao Ibama, desde o final de 2016, no pagamento da locação dos veículos e helicópteros da fiscalização do bioma. O segundo contrato nesse sentido, o Profisc 1-B, envolveu a disponibilização de R$ 140 milhões em 36 meses e vence em abril de 2021. Estranhamente, em 2020 o Ibama usou somente R$ 10 milhões desses recursos até agora”, disse a especialista sênior em políticas públicas do OC e ex-presidente do Ibama Suely Araújo.
O apoio internacional não se resumia às ações de fiscalização. “Destaco o projeto Áreas Protegidas da Amazônia (Arpa), lançado em 2002 e considerado o maior programa de conservação de florestas tropicais do planeta. O Arpa encontra-se na terceira fase, iniciada em 2014, mas sua implementação está em ritmo lento no atual governo. De forma geral, o governo Bolsonaro reduziu o ritmo de execução dos acordos internacionais nesse campo, questionando a participação de organizações não governamentais e outros aspectos. Considero uma mistura de inação calculada e ideológica, um dos elementos que moldam a antipolítica ambiental do governo Bolsonaro”, disse Suely.
Ataques bolsonaristas
Em seu discurso na ONU na terça-feira (22), Bolsonaro disse que há uma “campanha de desinformação” sobre a Amazônia e o Pantanal e que o fato de a região amazônica ser “riquíssima” explica “o apoio de instituições internacionais a essa campanha escorada em interesses escusos que se unem a associações brasileiras, aproveitadoras e impatrióticas, com o objetivo de prejudicar o governo e o próprio Brasil”. Na semana passada, Ernesto Araújo havia defendido “repensar o sistema multilateral”, que “éramos [Brasil] líderes conduzidos por interesses e ideias alheias” e que “liderança na questão ambiental era fazer tudo o que os europeus queriam”.
“Essa ideia de que o Brasil nasceu para ser uma ponte. Eu não acho que o Brasil nasceu para ser ponte. O Brasil nasceu para ser o Brasil. Outros que construam as pontes. Não estamos aqui no mundo para construir as pontes entre os outros. Mas ser o que nós somos e decidir o que queremos”, disse o chanceler. O vice-presidente Hamilton Mourão também já afirmou que os países estrangeiros seriam supostamente desinformados sobre a Amazônia, ao dizer que iria convidar embaixadores para uma visita à região — quando os países têm ao seu alcance inúmeros relatórios detalhados e dados atualizados sobre a situação.
O isolamento do Brasil
As consequências do rumo tomado pelo governo Bolsonaro preocupam especialistas como o ex-diretor do Inpe (2005-2012) Gilberto Câmara, diretor do GEO (em português, Grupo de Observação da Terra), uma parceria intergovernamental entre mais de cem países-membros, a Comissão Europeia e 115 organismos internacionais.
“O isolamento do Brasil terá efeitos em todas as áreas: (a) redução de mercados para produtos agrícolas brasileiros, em especial na Europa; (b) redução de investimentos estrangeiros no país, devido à crescente ênfase de investidores em países e empresas ambientalmente corretos; (c) redução ou corte total de doações destinadas ao combate ao desmatamento, como aconteceu no Fundo Amazônia. Os riscos diplomáticos são consideráveis, especialmente se [o candidato democrata à Casa Branca Joe] Biden vencer a eleição nos Estados Unidos. Num cenário de predomínio do Partido Democrata, a aplicação de sanções e restrições à atuação de empresas americanas no Brasil pode representar uma plataforma de ganho político para Biden com baixo impacto econômico”, disse Câmara.
Um servidor público federal com larga experiência em fóruns internacionais sobre meio ambiente adverte que “esse caminho irá nos levar para o isolacionismo”. “Com o governo Bolsonaro, estamos retomando os primórdios da década de 70 com certa semelhança na postura internacional do Brasil. Os generais da ditadura negavam a tortura e desafiavam o mundo a nos visitar para comprovar. Na época não tinha Facebook mas tinha a censura.” O ex-presidente da Funai, ex-deputado federal e indigenista Márcio Santilli, da organização não governamental ISA (Instituto Socioambiental), disse que “ter ou não uma agenda socioambiental consistente fará toda diferença na qualidade do futuro que queremos para o Brasil”.
“Depredar as florestas e os ambientes naturais nos isola dos povos e países que mais se desenvolveram cultural e economicamente e nos relega ao que de pior existe no mundo em termos de violência, ignorância e miséria. A diversidade cultural e biológica é o melhor passaporte do Brasil para crescer econômica e culturalmente, ao lado das nações mais civilizadas do mundo.”
Rubens Valente
Colunista do UOL
Fonte: noticias.uol.com.br