Não é mais surpresa para ninguém a obsessão por armas de fogo da família presidencial. Depois da famigerada reunião ministerial de 22 de abril de 2020, também não surpreende seu plano político de armar todo cidadão. Na sua lógica, pouco importa a segurança pública: o brasileiro de posse de seu revólver ou pistola de preferência subjugará medidas supostamente autoritárias de governantes locais.
Nesta toada, ao contrário de quase todas as outras fracassadas iniciativas de seu governo – como as reformas estruturantes na economia e sua política externa –, o presidente tem tido sucesso em implantar sua agenda belicista, governando via decretos e portarias rumo a um país armado. Seu último golpe veio no formato de “Pacote de Carnaval”, trazendo na sexta-feira (12) à noite, em edição extra do Diário Oficial da União, quatro novos decretos alterando mais uma vez as normas que regulam armas de fogo. Desde sua posse, já são mais de trinta atos normativos modificando regras e procedimentos sobre o tema.
Desta vez, chama a atenção tanto o alcance dos afagos feitos a determinadas categorias profissionais beneficiadas pelas medidas quanto o conteúdo específico trazido pelas normas. Assim como nos atos anteriores, a justificativa padrão dada pelo presidente para as mudanças tem sido a desburocratização do acesso às armas, bem como a facilitação das atividades de tiro dos CACs – sigla que denomina colecionadores, atiradores desportivos e caçadores e cujo significado o Brasil foi obrigado a aprender dada a profusão de privilégios concedidos à classe desde janeiro de 2019.
Neste caso específico do Pacote de Carnaval, entretanto, Bolsonaro espertamente usou a diversidade de privilégios concedida aos CACs como cavalo de Troia para contrabandear medidas que também favorecem outros profissionais que têm engrossado sua base política. Os decretos, assim, favorecem membros do Judiciário, Ministério Público e agentes de segurança pública (policiais federais, estaduais, penitenciários e guardas municipais). Pagam com armas e munições o suporte político que Bolsonaro tem recebido de integrantes dessas corporações. Dentre as benesses compreendidas pelos decretos estão a concessão de armas de uso restrito em ainda maior quantidade do que já era regra, aumento do limite para até oito armas de uso permitido e a concessão para adquirir insumos para recarregar até 5 mil munições por arma registrada por ano dentro de casa.
O curioso (ou intencional) das medidas é que, a partir de sua vigência em sessenta dias, policiais que são CACs poderão individualmente comprar armas sem necessidade de autorização prévia do Exército, enquanto as suas próprias instituições policiais continuarão a ter controles rígidos sobre tipos e calibres de armas, coletes balísticos e equipamentos. Ainda pior, nem mesmo o cidadão comum que obtiver o título de atirador ou caçador dependerá mais dessa anuência para adquirir até sessenta armas.
Bolsonaro, assim, vai atingindo seu objetivo armamentista ao mesmo tempo que dá de comer às suas bases. O gracejo em direção à classe policial e a membros do sistema de Justiça alicerça sua imagem de amigo da segurança pública sem ter conseguido avançar nenhuma política pública relevante na área. Nem mesmo o Susp, Sistema Único de Segurança Pública, deixado pelo presidente Temer e seu artífice no setor, ministro Raul Jungmann, em bandeja de prata pronto para implementação, foi aproveitado para tapar o vazio propositivo da atual gestão. A resposta de Bolsonaro para os problemas crescentes da segurança no país é a mesma que oferece às outras pastas da Esplanada: mais armas.
Ainda no Pacote de Carnaval, causa estranheza a exclusão de alguns componentes de armas de fogo e munições da lista de produtos controlados do Exército. Para armas, o governo deixará de controlar e fiscalizar a venda e uso de carregadores de munição (o popular “pente”), miras ópticas e quebra-chamas.
Aparentemente algo que só interessaria aos aficionados, esses acessórios podem aumentar, e muito, o potencial ofensivo de pistolas, fuzis e carabinas. A título de exemplo, em um atentado em escolas – como já aconteceu mais de uma vez no Brasil -, o atirador poderá comprar livremente em loja quantos carregadores quiser para alimentar sua arma, incrementando seu poder de fogo antes limitado, ou ao menos controlado. Mesmo os Estados Unidos, modelo de sociedade armada para o presidente, já tentaram proibir o uso de carregadores de alta capacidade para fuzis no passado, justamente para coibir o abuso do poder de disparo de certas armas.
Porém, ainda mais audaciosa e inexplicável que a exclusão de acessórios para armas de fogo da lista de produtos controlados é a intenção do Exército e do governo de deixar de fiscalizar a venda e o uso de máquinas de recarga de munição e seus projéteis (chumbo). Com a medida, o governo abre mão de minimamente registrar e fiscalizar a capacidade de indivíduos de produzir munições autonomamente.
O problema da munição recarregada é sua virtual impossibilidade de rastreamento. Ao fabricar-se uma munição caseira, ela deixa de apresentar características de fábrica que podem ser usadas na identificação de seu proprietário original em uma eventual investigação criminal. O Brasil, inclusive, é parte do Protocolo contra a Fabricação e o Tráfico Ilícito de Armas de Fogo das Nações Unidas, que exige o controle de munições no país, compreendendo como munição todos os seus componentes. Assim, ao liberar a venda de projéteis indiscriminadamente o governo atenta também contra o direito internacional.
É bem verdade que CACs são grandes consumidores de munição e a recarga particular barateia imensamente seu custo unitário. No entanto, a medida trazida pelos decretos vai muito além. Agentes da segurança pública, magistrados e membros dos MPs também ganharam o direito de adquirir insumos para recarga de munição, mesmo não figurando como atiradores ou caçadores, inclusive aposentados. Sem mais quase nenhum pudor, vemos em marcha uma ousada estratégia de cooptação dos representantes da Lei e da Ordem sem que as instituições sejam totalmente capazes de separar interesses privados de seus integrantes de missões a atribuições constitucionais.
Agraciar sua base com medidas que desburocratizam seu passatempo bélico já é algo esperado deste governo, mas a pergunta que emerge nos novos decretos é: por que Bolsonaro pretende estimular a fabricação caseira de munições abaixo da linha do radar do Exército e de investigações criminais? Como gostam de dizer os filhos 02 e 03, não é o caso de ligar os pontos e constatar os interesses em marcha? E agora não como teorias da conspiração, mas como evidências e atos formais de um governo que deve prestar contas à população.
No país campeão em homicídios com arma de fogo e com imensas dificuldades na estrutura de investigação desses crimes, abrir mão da capacidade de rastrear munições ou ao menos identificar quem as fabrica coloca ainda mais dúvidas sobre as boas intenções das medidas. Tal medida, mais uma vez, posiciona o Brasil no fluxo contrário do movimento internacional de redução da violência por meio da identificação e controle de armas, munições e seus insumos.
Com homicídios voltando a subir mais de 5% em 2020 e uma pandemia que matou cerca de 240 mil pessoas, medidas como essas deixam claro o compromisso deste governo em privilegiar correligionários em detrimento da vida e da segurança pública. Os mesmos policiais que, em uma análise rasa, se veem beneficiados por essas medidas, serão os primeiros a sentir na rotina de seu trabalho todo o impacto que essas armas apresentarão na sociedade brasileira por anos a fio.
Aos amigos do presidente, as armas. Ao resto dos cidadãos brasileiros, a morte por susto, bala ou vírus.
IVAN MARQUES
Advogado, integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
RENATO SÉRGIO DE LIMA
Professor da FGV EAESP e diretor presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Fonte: piaui.folha.uol.com.br